Merleau Ponty, Husserl e a fenomenologia:
No prefácio da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty faz uma re-leitura da fenomenologia de Edmund Husserl criticando o idealismo transcendental e transpondo a essência idealista para a existência factual em fenomenologia. Percebe-se que Merleau-Ponty não interpreta Husserl ao pé da letra, mas percorrendo o seu caminho e retomando o pensamento do criador do método fenomenológico, principalmente a partir de seus últimos textos. Merleau-Ponty entende que a consciência não é consciência sozinha e critica a ideia de que sou produto de uma coisa, na medida em que esta afirmação exige uma experiência. A fenomenologia não caminha, então, na direção da ciência porque ela põe, justamente, entre parênteses as informações científicas e não é, absolutamente, um retorno idealista. Ao afirmar que não há homem interior, Merleau-Ponty, além de transcender uma perspectiva dualista que divide o homem em interior e exterior, nega o idealismo transcendental, que retira do mundo sua opacidade. Ponty coloca a percepção como o fundo sobre o qual todos os atos se liberam, ao mesmo tempo em que ela é pressuposta por estes. A percepção, para Merleau-Ponty, é o campo de revelação do mundo, campo de experiência, e ela não é um ato psíquico. A percepção é o campo onde se fundem sujeito e objeto. Ponty defende a idéia de que homem é mundo e o mundo é homem, o homem é parte do mundo e vice-e-versa. Trata-se, então, do enraizamento do homem no mundo, ou seu atolamento congênito o que justifica a necessidade da utilização da redução fenomenológica como um artifício lógico para que se alcance a realidade, ainda que não se possa esquecer que a maior característica da redução fenomenológica é que esta nunca é completa. Ou seja, a prática da redução fenomenológica será sempre uma tentativa, nunca inteiramente realizada, exatamente pela mundaneidade intrínseca ao homem. Para Merleau-Ponty, um mal-entendido de Husserl foi pensar que para ver o mundo, e captá-lo, é preciso romper nossa familiaridade comele: "Esta familiaridade nunca poderá ser totalmente rompida e é por isso que se deve sempre partir do princípio de que o maior ensinamento da redução é a impossibilidade da redução completa" (Merleau-Ponty). A leitura que Merleau-Ponty faz de Husserl privilegia a posição de Heidegger, ao contrário de uma leitura essencialista. A busca das essências é, nada mais, que um meio de revelação da existência ou facticidade; não se pode pensar a essência desvinculada do mundo. Compreender, então, significa distinguir a singularidade de cada acontecimento. O objeto não é, portanto, constituído pela consciência, dado que o próprio conceito de consciência se dilui no último. Merleau-Ponty, critica, também, o conceito de intencionalidade: "Só sairemos desse impasse quando renunciarmos à bifurcação entre a consciência de... e o objeto, admitindo que meu corpo sinérgico não é objeto, que reúne um feixe de consciência aderente a minhas mãos, a meus olhos..."(Merleau-Ponty). A noção de verdade em Merleau-Ponty caminha, então, na direção do sentido que aparece e desaparece, escapa, na opacidade do mundo. A verdade é um movimento em constituição, não um estado. Esse momento se constitui na minha relação com o mundo, no meu campo perceptivo e o que caracteriza a essência dessa verdade é o mistério inesgotável, uma gênese perpétua, sempre aberta. A verdade é mistério, infinitamente recomeçando, inesgotável. Trata-se de revelá-lo. Merleau-Ponty rejeita as verdades fechadas e pensamentos idealistas. Põe a fenomenologia de pé no mundo. O conhecimento é sempre inacabado, não existe absoluto. Sua perspectiva tem uma postura política que desautoriza qualquer tipo de totalitarismo. Em "La doute de Cézanne", Merleau-Ponty faz uma analogia entre sua filosofia e a pintura de Cézanne, mostrando que nesta pintura pode-se constatar que o real se mistura com a realidade, deformando, assim, a realidade. Para Merleau-Ponty, a pintura de Cézanne, assim deformada e com múltiplos contornos, é muito mais real que uma fotografia, por exemplo, que pretende retratar a realidade exata de um determinado momento. A fotografia perde o movimento e separa o real do imaginário, o que a transforma em algo fictício, irreal, já que a realidade, tal como percebida, está sempre em movimento e é sempre deformada, sobretudo porque não existe uma demarcação definida entre o real e o imaginário. "Não assinalar nenhum contorno seria privar os objetos de sua identidade. Assinalar somente um significaria sacrificar a profundidade, quer dizer, as dimensões que nos facilita a coisa". O desenho resulta, assim, da cor e não de um traço único e, o mundo se coloca em sua espessura como uma massa densa, um organismo de cores e de linhas. A cor lhe dá textura e consistência através de seus múltiplos contornos e não de um traço único e limitante, de maneira que a pintura de Cézanne retrataria, assim, o pensamento de Merleau-Ponty pela ruptura definitiva das dicotomias, através do reconhecimento das ambigüidades inerentes ao ser humano na idéia de múltiplos contornos.
Referências Bibliográficas:
Isabel Matos Dias, Elogio do Sensível, Lisboa, Litoral Edições, 1989
Maurice Merleau-Ponty, O visível e o invisível (1964), Brasil, Editora Perspectiva, 2003.
Maurice Merleau-Ponty, A dúvida de Cézanne,4 in Cadernos de Filosofia, Coimbra, Ideias e Comunicação, 1994.
Site de referência:
http://filosofiadaarte.no.sapo.pt
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