quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O eu não existe só, ele (o eu) não é, ele necessita da circunstância para ser.



As circunstâncias e a curiosa história de Kaspar Hauser:



Ortega y Gasset, vendo-se envolto numa atmosfera conturbada em sua época, buscou compreender sua situação concreta no contexto próprio em que se encontrava. Para isso caminhou pelo viés do historicismo para assimilar de modo mais pleno a Espanha naquele exato momento histórico, isto é, em sua circunstância. Resumidamente, o conceito de circunstância é a realidade das coisas e de mim na vida, na minha vida. A realidade das coisas ou a do eu dá-se na vida, como um momento dela. Assim, o momento único – que contém a minha circunstância – é algo somente meu, relaciona-se somente comigo na forma indivisível com que se apresenta, e alimenta em mim a necessidades de ação. Ninguém é alheio à circunstância, não há jeito, modo, maneira de se livrar dela, não há como estar fora de uma dada circunstância. Ela se mostra a nós seguindo o ritmo histórico de progressão dos fatos. Uma vez que “eu sou eu e minha circunstância”,  me vejo impossibilitado de agir sem uma reflexão, por mais pequena que seja, e me coloco a necessidade de tomar decisões. A vida, a  minha vida, é  uma sucessão de fatos amoldados que me coloca a par de todo o contexto a que me submeto. O eu não existe só, ele (o eu) não é, ele necessita da circunstância para ser. Temos de ser e, para ser, o que nos ocorre é adentrar em nossa circunstância para, a partir dela, abraçarmos um percurso próprio e que nos leve à realização pessoal. Por nossa circunstância, nos tornamos seres solitários, vivemos uma vida individual e distinta de outro. Vivemos nossa circunstância única, que não se repete e com isso, somos levados a  nos diferenciar de tudo. Diante de minha circunstância, me proponho, por força do desenrolar histórico, a me mover e, assim, neste movimento, me construo, me faço. Uma simples análise e reflexão sobre o que é circunstância e o quanto ela determina o nosso quadro de possibilidades, torna curioso e desafiador o caso do menino Kaspar Hauser. Ele apareceu pela primeira vez numa praça de Nuremberg, em maio de 1828, era um estranho, ninguém sabia quem era ou de onde vinha, trazia uma carta de apresentação anônima para o capitão da cavalaria local, contando que fora criado sem nenhum contato humano, em um porão, desde o nascimento até aquela idade (provavelmente 15 ou 16 anos) e pedindo que fizessem dele um cavaleiro como fora seu pai. Ficou-se sabendo mais tarde (quando K. Hauser aprendeu a falar) que uma pessoa, que ele não conheceu, tratava dele enquanto esteve isolado, deixando-lhe alimentos enquanto dormia. Foi acolhido na casa de um professor que se responsabilizou  em iniciar sua socialização. Quando apareceu em Nuremberg, o garoto não entendia nada do que lhe diziam, e não sabia andar direito, parecia um menino dentro de um corpo adolescente. Seu comportamento estranho para os padrões sócio-culturais estabelecidos, causava um misto de espanto e interesse. Era visto como um "garoto selvagem", apesar de demonstrar ser dócil, simples e gentil. Possuía algumas habilidades como conseguir enxergar muito longe e no escuro, além de gostar de animais, principalmente dos pássaros. Ao mesmo tempo tinha medo de galinhas e fugia delas aterrorizado. Graças à sua curiosidade infantil e memória notável, aprendeu várias coisas muito depressa. Kaspar Hauser tornou-se uma espécie de atração por sua história de vida diferente. Todas as pessoas da cidade queriam vê-lo.  Muitas foram as hipóteses levantadas para explicar o fato de Kaspar Hauser ter sido criado no isolamento. Dentre essas hipóteses há duas explicações principais: a primeira diz que ele seria um mendigo espertalhão e que fingia toda a história para atrair a simpatia alheia, a segunda explicação, porém trabalha com a hipótese de que ele seria neto de Napoleão Bonaparte. Hauser foi criado no isolamento e privado de educação, condicionamento e repressão, sendo exatamente esse processo de  integração o escolhido para educá-lo, e o instrumento principal desse processo era  a linguagem, em sua socialização, Hauser teria que aprender aquilo o qual nunca desenvolveu, isto é, a representação de si e do mundo. O século XIX, época em que Kaspar Hauser viveu, foi um período marcado pela perspectiva positivista, evolucionista e desenvolvimentista. A visão de que havia um modelo de civilização e de desenvolvimento a ser alcançado, tanto pelos homens, como pelas sociedades, estava em seu auge. Todos aqueles que não correspondiam ao protótipo do homem "civilizado" eram classificados como primitivos, atrasados e deveriam ser "ajudados" a alcançar graus mais avançados na escala de desenvolvimento e evolução. É dentro dessa visão de mundo que  Hauser vai ser socializado. Ao chegar em Nuremberg ele sabia apenas repetir, com dificuldade, a mesma frase ("quero ser cavaleiro como meu pai"). As pessoas o viam com estranheza, tinha vivido sozinho, solitário no vazio de sua cela, e esta era sua circunstância. Não tinha muitas opções de escolha e, principalmente, não tinha aprendido a definir o que era escolher ou mesmo que lhe havia esta possibilidade, ele não conhecia a capacidade de optar e opnar, não era consciente de sua liberdade, noções básicas que se aprendem com os primeiros contatos com nossos pais, e imitando-os, num primeiro instante, aprendemos a fazer as nossas escolhas, aprendemos a reconhecer e refletir nossa circunstância. Ele não reconhecia o próprio passado,  porque jamais lhe fora ensinado ou teve exemplos a seguir, sendo, justamente, esta rememoração que se  faz essencial para nossa ação, porque nosso passado é indicador  dos nossos possíveis caminhos já que vem formando, uma após outra, nossa circunstância. Hauser não concebia que lendo nosso passado vamos ao encontro de nós mesmo, retomamos as relações anteriores com a circunstância passada e fazemos as escolhas pautadas neste avivamento do  presente. Todas as relações que construíram nossa circunstância são levadas em conta quando vamos agir em nossa liberdade. Na lápide de Kaspar Hauser, no cemitério de Ansbach, na Alemanha, há uma inscrição que diz: "Hic occultus occultu uccisus est." Quer dizer: "Aqui jaz um desconhecido assassinado por um desconhecido." 


Referências Bibliográficas:

Blikstein, I. (1983). Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix / EDUSP.      

Vygotsky, L. S., & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história do comportamento: O macaco, o primitivo e a criança. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Site de referência:
http://www.scielo.br
http://www.consciencia.org/o-circunstancialismo-em-ortega-y-gasset
filme "O enigma de Kaspar Hauser" - Herzog, Werner (Alemanha, 1974)


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