terça-feira, 20 de março de 2012

Manhã Submersa. Vergílio Ferreira


"Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isto a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta e que eu não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a importância que eu lhes dera". "Manhã Submersa"



Manhã submersa é um romance de Vergílio Ferreira publicado em 1954. A história do livro relata a trajetória de António Santos Lopes, uma criança de família pobre que, por ser inteligente, é obrigado a estudar num seminário. O narrador do romance é o próprio António Santos Lopes adulto, essa personagem já havia aparecido no romance Vagão J, de 1946. Manhã Submersa é uma obra de ficção, porém  com caraterísticas de um romance de aprendizagem, e um  cunho autobiográfico. É o sexto romance de Vergílio Ferreira, que costuma ser lido como uma espécie de preâmbulo aos outros romances porque deixa aparecer o pensamento do autor sobre a existência e seus caminhos. Nas primeiras páginas do romance já se observa um jogo divertido em que Antônio dos Santos Lopes, personagem narrador, diz ser este seu nome de lei, mas seu verdadeiro nome é Antônio Borralho. Ao  referir-se ao romance  Vagão J, Vergílio Ferreira deixa aberta uma porta para o leitor: a que descortina um certo encadeamento entre a sua e suas personagens; e entre, pelo menos, o assunto tratado e a emoção, ou a filosofia, ou a angústia. Isso também, por outro lado, pode levar a considerar uma dose de interdição quanto ao “conteúdo” do que vai ser revelado pelo narrador. Vergílio Ferreira é sabidamente um representante português do existencialismo, porém com originalidade suficiente para afastar o dogmatismo que possa ter herdado dos franceses, especialmente Camus, Sartre e Malraux, sem falar nos filósofos Kierkegaard, Jaspers e Gabriel Marcel. Da leitura de suas obras, e, dentre elas, sobretudo, Manhã submersa, pode-se perceber o tom comum a suas personagens, como fica evidente no seguinte trecho: “Falo agora à memória destes últimos vinte anos e pergunto-me que destino atravessou a minha vida além desse pavor, que outra voz mensageira lhe chamou ao futuro além da voz de uma noite sem fim” (p. 15). Solidão, sombras, tristeza, terror, silêncio, noite, dor, ódio são temas verbalizados correntemente, tal como no relato sombrio de Manhã submersa, que conta a luta para livrar-se do seminário e voltar à vida de liberdade da infância. A infância do narrador não fora nem tão feliz para ser tão lembrada e tão querida, vai-se sabendo no decorrer da leitura. A posição social da família, a pobreza, a orfandade, talvez (o pai do personagem não aparece), a distância em que viviam dos meios civilizados, a rusticidade dos seus parentes etc. ou a falta de carinho, quem sabe... tornaram Antônio Borralho um ser imaginativo e pessimista. Manhã submersa é um romance autobiográfico, sem dúvida, pois sabe-se que aos dez anos o autor entrou para o seminário, não seguindo porém a carreira eclesiástica. Ele questiona as regras duras, a perda de liberdade, a vocação, a existência de Deus e a violência da realidade. O humanismo integral que transparece na obra de Vergílio Ferreira, sem distinguir o ensaio da ficção, parte de uma convicção preliminar: o sujeito está no mundo e só no mundo deve procurar respostas para as indagações que faz. Por isso mesmo, a existência se transforma num prodígio e numa tragédia. Num prodígio porque é uma forma suprema de alegria. E numa tragédia porque apenas dentro da existência (e não fora dela) deve o sujeito indagar-se e conhecer-se. Tal indagação, restrita aos limites da condição humana, gera angústia existencial. Em qualquer caso, é sempre a condição humana que se deve levar em conta, sem deuses ou estereótipos. Em outras palavras, o sujeito deve contemplar-se face a face, deve “aparecer” no discurso que descreve, representa e constitui a própria subjetividade. Isso porque o absoluto está nele e não em outros valores que possam pensar por ele. 

Referências Bibliográficas:

Ferreira Vergílio, Manhã submersa. 13 ed. Venda Nova: Bertrand Editora, 1987.

GODINHO, Hélder. O universo imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa: Lisboa Editora, 1985. Série Literatura, 13.

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