“ Um diário. Uma carta. Ou simplesmente as memórias. Nós
lemo-las com um prazer diferente de uma obra de arte ou mesmo
da arte que está nelas. Não é bem o de saber o que aconteceu,
mas o de estarmos nós acontecendo nisso que aconteceu.
Ou seja, de prolongarmos a nossa vida até lá.”
Vergílio Ferreira
Eça de Queirós achava que se deviam publicar de um homem célebre até as "contas do alfaiate". Quem conta isto é o escritor Vergílio Ferreira num dos volumes do seu diário "Conta Corrente", a propósito de uma discussão que teve com a sua mulher, Regina Kasprzykowski, sobre se é lícito ou não publicar o que um autor rejeitou. Para Vergílio Ferreira, "um autor não dá garantias quase nenhumas (quando grande autor) sobre a valia do que realiza. E não há obra medíocre alguma de um autor que lhe destrua a obra superior." O escritor (Vergílio) foi mais longe: "Saber como se errou, progrediu, hesitou - tudo são modos de ampliar o conhecimento de um autor. De qualquer modo, se um artista não quer que se lhe conheça a obra, destrua a ele". Vergílio Ferreira não destruiu a sua e deixou o acervo tão organizado que só poderia estar a pensar no futuro. A curva de uma vida é o primeiro livro de Vergílio Ferreira, datado de 1938, uma novela, nela aparecem já os grandes temas que marcariam a obra dele: a ausência do pai, a figura da mãe, a culpa, a busca da identidade. Nesta novela, Vergílio conta a história de uma personagem cuja descoberta de que não é quem pensa ser e das consequências disso na avaliação que faz da mãe o leva a adotar um comportamento eticamente reprovável: a violação da irmã, adolescente, do seu melhor amigo do liceu, que entretanto se tornou advogado e que ele contrata para o defender em tribunal, desconhecendo a identidade da moça. “A Curva de Uma Vida” foi descoberto no espólio do escritor. O leitor encontra já nesse primeiro livro de Vergílio Ferreira uma poderosa capacidade de escrever: " O criado João tinha sorrisos largos mas o coração era manso como o dum boi". Há também o trecho: "...corava quando me presenteava com bons pêssegos moles e sumarentos, que ele tratava com um amor silvestre. Tudo nele era inculto: as unhas, o cabelo e a bondade". O que há no livro e não mais deixaria de haver em toda a obra de Vergílio Ferreira é descrição essencial da vida e do homem, as necessidades e contigências insensíveis, os desejos e medos sensíveis ao humano: "Surpreendendo a mãe na cama com o seu próprio cunhado, Amadeu, o olho furioso, na ânsia de se fartar de verdade conta: não via minha mãe, via uma mulher e admirei-lhe os contornos mal cobertos. Pelos meus nervos andaram gozo infernais". O leitor arrepia-se incestuosamente ali, impúdico e inconveniente.
Site de referência:
http://www.publico.pt/Cultura/novela-inedita-de-vergilio-ferreira
Referência bibliográfica:
FERREIRA, Vergílio – “A Curva de Uma Vida”. Lisboa, Quetzal Editores, 2010
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