Vergílio Ferreira e sua obra:
Vergílio Ferreira com o sangue quente da juventude nas veias, foi, como tantos outros, sensível à «urgência» da «questão social», no entanto, logo se deu conta que «nem só de pão vive o homem» e de que lá, no fundo dele, lateja o grito surdo do seu interrogar, do que é realmente importante, segundo ele, o único problema essencialmente humano e que subsiste mesmo quando todos os demais tenham sido eventualmente resolvidos. E foi como Vergílio Ferreira passou de uma arte visando um problema dos homens (o neo-realismo) para uma arte exclusivamente dedicada ao homem-problema. Mesmo sabendo que não é uma solução que visa, mas "gastá-lo"(o problema), até que o sofrer-se homem se torne mais suportável. E neste original interrogar-se a si e não aos outros, foi erguida a obra de Vergílio Ferreira. Esta transição de uma problemática social para uma outra, a da radicalidade existencial, do Vergílio-indivíduo girando sem fim em torno do «eu» de si mesmo. A passagem, enfim, de uma literatura marcada ainda pelo tom ideológico para uma outra alimentada pelas «ideias de sangue». No caso de Vergílio Ferreira, a aventura criadora complica-se, pois a sua referência inicial é a de Eça de Queirós, seu itinerário é a história de um afastamento contínuo de Eça sem jamais o perder de vista. Tendo o romance como consciência crítica do mundo, Vergílio Ferreira fez a síntese, tanto no romance como no ensaio, de uma aguda e permanente capacidade de sentir a dupla agonia, ou o combate único, da vida sem razão e da razão como tribunal da vida. A forma romanesca que utilizou é um monólogo entre uma consciência atenta ao seu destino social e histórico e uma consciência – a mesma – incapaz de encontrar, em qualquer forma desse destino, uma resposta para o que interroga desde a origem. Foi essa obra – ficção ou ensaio – que Vergílio nos deixou, não como algo produzido só tecnicamente, que isso é, segundo ele, «literatura de consumo», mas como algo em que investiu a fundo, não deixando fora um pingo de «emoção» que fosse – ele jogou-se inteiro na sua obra de interrogação, e não de um interrogar asséptico e inconsequente, como se tudo não passasse de um mero exercício de puro enlevo intelectual. Em Vergílio Ferreira, tanto o ensaio como o romance convergem num ponto de auto-questionamento dramático, cumprindo o dever essencial do homem culto e intelectual, segundo ele, o de «interrogar o seu tempo». Todos os romances de Vergílio Ferreira, mesmo os primeiros, estão cheios do que se poderia chamar obsessão metafísica ou pathos metafísico; os temas da angústia, da morte, do tempo, de Deus, do sentido da arte ou da história, estão presentes no seu questionar constante. A grandeza da obra literária de Vergílio Ferreira está na capacidade de interpretar e transmitir, não tanto, as formas partilhadas e equivocamente comunitárias de viver, mas um viver por inteiro e no absoluto solitário do eu, a vida que a cada um coube viver. Outro tema presente na obra de Vergílio Ferreira foi acerca do conceito de pátria, sendo pátria, segundo ele, uma comunidade de destino, em que o que se valoriza não é tanto a glória de se ter sido o que se foi, mas, sobretudo, a responsabilidade de sermos, no futuro, o que em nós sentimos que devemos ser. Pátria é o modo especial de sentir, isto é o que, justamente, nos define como povo. A história de um povo é a história de uma sensibilidade, nas múltiplas formas de sermos em concreto, o homem que somos: "A pátria, como tudo, és tu. Se for também a do teu adversário político, já é problemático haver pátria que chegue para os dois"(Vergílio Ferreira). Esta concepção de pátria para Vergílio Ferreira, nos remete à uma ambiguidade entre uma radical singularidade do «eu» e a necessidade de um "modus vivendi" que permita a sobrevivência em ordem e em paz da vida em comunidade. Entre a essencial singularidade de cada um (aquilo que faz cada ser o que é), e aquilo que o diferencia. Portanto, achar o equilíbrio entre um mundo, que se reconhece no mundo que é o seu (o comunitário), e o apelo vivo que, no íntimo de cada eu, a radical experiência existencial reclama. a este conceito tende Vergílio a dar uma conotação de persistência no ser ao longo do tempo: "Sermos o que somos, e há tanto tempo que o somos, que não queremos nunca deixar de sê-lo ". Para Vergílio incomodava-o e o entristecia, particularmente, a sonolência coletiva, a indiferença perante a inalienável tarefa de assumirmos a razão de sangue e de alma: "Aprendi a montanha ao nascer, tive a primeira noção do mar na infância e fiz uma longa aprendizagem da planície na idade adulta. Hoje tenho o país todo dentro de mim e sinto-o circular-me nas veias ao pulsar do coração"." É preciso desideologizar a vivência comum, porque uma doutrinação enrijece-nos e instala-nos no fortim do absoluto que nos aquieta. A ideologia em que nos enquistemos toma conta de nós e fossiliza-nos na exactidão axiomática de nós. E aí o dogma ideológico que nos invadiu o sangue e se nos consubstancializou resiste a tudo o que de sensato o queira desmentir. A alienação ideológica é como que um «estado alterado de consciência»; ela provoca um estado demencial . Por isso, «o mínimo que de nós podemos exigir é assim a sensatez".(Vergílio Ferreira). Porém, há uma contradição entre um certo destino nacional e a certeza de que, por muito juntos e unidos que caminhemos, o fim a que haveremos fatalmente de chegar é a desagregação e o silêncio. Mas essa é , a mesma aparente contradição entre o “ser-para-a-morte, e o ser homem até onde mais sê-lo não se possa. "É que o homem é excesso, ele é demais para a sua medida. O homem é, em sonho, a imortalidade da sua real mortalidade, e a razão para se ser homem quando nenhum destino à altura do seu sonho o aguarda, quando do lado de lá do mundo só o silêncio definitivo, é exatamente a mesma razão para que um povo o seja. E que razão é essa? Nenhuma. É como se o nosso destino coletivo se fizesse do esforço de todos para termos razão para a um destino merecer. Como se houvesse o subterrâneo fio de esperança de que possa valer a pena vivermos como povo, como cada um deve viver-se: nos territórios da dignidade e da honra". (Vergílio Ferreira).
Referências bibliográficas:
CUNHA, Carlos M.F. da, Os mundos (im)possíveis de Vergílio Ferreira, Difel, Algés, 2000.
DAL FARRA, Maria Lúcia, O narrador ensimesmado : o foco narrativo em Vergílio Ferreira, Ática, São Paulo, 1978
GORDO, António da Silva, A escrita e o espaço no romance de Vergílio Ferreira, Porto Editora, Porto, 1995.
GOULART, Rosa Maria B, Romance lírico : o percurso de Vergílio Ferreira, Bertrand Editora, Lisboa, 1990.
Site de referência:
http://www.lusosofia.net
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