sábado, 24 de março de 2012

Aparição: Vergílio Ferreira episódio 5


Aparição: Vergílio Ferreira episódio 4


Aparição: Vergílio Ferreira episódio 3


Aparição: Vergílio Ferreira episódio 2


Aparição: Vergílio Ferreira episódio 1


"Aparição". Vergílio Ferreira



E, mesmo que o caminho fique longe e, ao  percorrê-lo, a angústia e o  desespero  estejam presentes, é necessário ir em frente, para que se procure superar os obstáculos, porque o invencível sonho do homem tem que ser salvo. Vergílio Ferreira.



Vergílio Ferreira, numa área que não tem muitos precedentes em Portugal, disse tudo o que lhe passou pela alma, pelo coração, pelos nervos. No romance como no ensaio, o pensamento de Vergílio Ferreira constrói-se de forma gradativa, sempre numa procura e apelo emocionado de um espaço humano onde as barreiras de toda a espécie, incluindo  as intelectuais, fossem abolidas para a livre circulação  inquiridora da verdade ou  da palavra última que abrisse a porta do "quarto proibido", como nas histórias tradicionais, o quarto onde a chave do Mistério está guardada. Suas obras tornam-se uma espécie de convite à procura de nós próprios, com todos os segredos que podem ficar por desvendar, mas onde o  caminho  e sentido  do  humano  impõe a travessia, mesmo que às vezes nos possamos perder. Em Aparição, Vergílio Ferreira escreve: “A unidade que nos pré-existe a cada um, a unidade de sermos, a vida imediata, quotidiana, é uma selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação. Tão fácil perdermo-nos! O mais grave, porém, é que na sua rede muitas vezes não sentimos que nos perdemos. Cada caminho impõe-se-nos na sua presença imediata. Um caminho  é ‘o’ caminho  em cada instante". E a cada instante do pensamento e vida de Vergílio Ferreira, as suas personagens lutam, antes de mais nada, por um espaço positivo para poderem existir – o espaço do eu: "E, mesmo que o caminho fique longe e, ao  percorrê-lo, a angústia e o  desespero  estejam presentes, é necessário ir em frente, para que se procure superar os obstáculos, porque o invencível sonho do homem tem que ser salvo". É por isso que, à semelhança de Camus no Mito do Sísifo, onde se afirma que: “é preciso  imaginar Sísifo feliz” –, também em Vergílio Ferreira algo de aproximado se poderá afirmar. Ainda em Aparição, escreve: “Não há presenças aqui senão as das origens (…). Estou só. Habito o início, o silêncio de mim próprio, onde a verdade é nua como  o luar da montanha”. A origem, o silêncio, o silêncio  de nós próprios, a verdade e o  luar da montanha são  algumas das mais significativas “peças” para constituir um dos quadros mais perfeitos do pensamento deVergílio Ferreira. Mas, mesmo que o dilaceramento, o fracasso e a morte sejam constante presença na sua obra, há nela sempre lugar para uma última esperança, uma “estrela polar” que proporciona uma alegria, mesmo  que breve, porque possível pela luta, mesmo  que ambígua, entre a luz e as trevas, a vida e a morte. Depois de Mudança e sobretudo a partir de Aparição, Vergílio Ferreira, declaradamente e sem qualquer subterfúgio, partindo naturalmente da sua subjetividade (caráter fundamental do existencialismo)”, nos aparece também como  um humanista em todos os seus aspectos. Até ao  fim e, desassossegadamente, convocando  não só  o seu  “eu” mas também o  “nós”, rumo  ao caminho da responsabilidade e autenticidade, o autor elegeu como valor por excelência a vida humana com todos os seus confrontos. 

RESUMO DO LIVRO:

Alberto Soares é o narrador/personagem. Alberto já velho, no casarão da aldeia, fica a relembrar o passado. Um mais distante, da infância e o outro, mais recente, de professor recém formado que vai trabalhar em Évora. Professor de língua e literatura, Alberto volta à cidade dos pais ,Évora. Relembra como se dera a morte do pai, ocorrida por síncope cardíaca em plena ceia de Natal. Relembra vários fatos: dos irmãos, Tomás, o filho mais próximo ao pai e Evaristo, mais próximo à mãe. Tomás, irmão mais velho, destaca-se pelo sentido de sua ligação com a terra, no trabalho rural, de conceitos mais simples e mais direto nessa mesma simplicidade. Relembra da infância ainda a perda do cão Mondego, cão vira-lata que adotara, mas cuja morte é causada devido às pedradas que recebera de Evaristo, e o pai, vendo o sofrimento que os ferimentos causara no animal, decide pedir a um empregado que o sacrifique para diminuir sua pena. Relembra a morte da mãe, ocorrida mais tarde que a do pai. A mãe morrera serenamente, mais de velhice do que por uma causa específica. Instalado numa pensão fica a relembrar estes e outros fatos traumáticos. Em Évora, Alberto assumirá o cargo de professor do Liceu local. Ao Reitor do Liceu expõe seus planos de ensino. Conhece na cidade o Dr. Moura, amigo do pai, médico. A família do Dr. Moura é constituída pela esposa e pelas filhas. Ana, a filha mais velha é casada com Alfredo, irônico e seguro de suas opiniões. Sofia, jovem, começa a ter aulas particulares com Alberto Soares para resolver suas dificuldades no Colégio. Cristina, a caçula, apenas 7 anos, está aprendendo a tocar piano e durante as noites antes do jantar, toca para todos, principalmente para o pai, que muito se contenta de vê-la tocar. Como Alfredo e Ana não têm filhos, resolvem entrar com um processo para adoção dos filhos de Bailote, um lavrador que se enforca por não ter mais a mão direita apta para semear. Conhece também Chico, engenheiro e amigo do Dr. Moura, que leva Alberto Soares a dar uma série de conferências no centro cultural Harmonia. Porém, Chico é um homem mais materialista e objetivo e pouco está afeito ao discurso metafísico e existencialista de Alberto Soares. Logo as opiniões do Reitor, de Alfredo e de Chico vão se chocar com a de Alberto. O Reitor lhe repreende por propor redações de temas existencialistas aos alunos e que isso tem diminuído a criatividade e aumentado suas angústias. Alfredo e Chico discordam de suas opiniões acerca da morte, do sentido da vida. Alfredo demonstra uma desconfiança aliada à curiosidade e Chico oferece a inimizade. No desenrolar das aulas particulares que dava a Sofia acaba surgimento um relacionamento amoroso que é mantido escondido do Dr. Moura. Um sobrinho de Chico, Carolino tem papel importante no desenvolvimento da história. Carolino era o aluno mais atento às aulas de literatura e o mais afeito ao discurso do professor. Seu apelido era o Bexiguinha devido as suas bexigas(acne) sentia-se inferiorizado pela sua aparência e na sua mente acaba invertendo alguns conceitos, passa a considerar o homem igual a Deus quando o homem domina o poder de matar. Na infância, ocasionara a morte involuntária de uma galinha e isso abre essa perspectiva na sua consciência. Durante as férias natalinas, Alberto deixa Évora e vai para a aldeia onde fica o casarão paterno para poder tratar da partilha dos bens paternos entre os três irmãos. Acaba tendo conversas e algumas discussões com Tomás acerca do assunto que tanto o inquieta: o sentido da existência da vida e da morte. Tomás, na sua simplicidade, se enfada da complexidade com que Alberto trata o tema e rebate com frases mais objetivas, afirmando, entre outras coisas, que para Tomás basta saber que a vida continua depois de sua morte. Isto para Alberto soa como uma espécie de epifania, de iluminação simplória mas forte. Quando volta à Évora, algumas coisas haviam mudado. Sofia, agora, namora com Carolino. Alberto aluga uma casa no alto de São Bento, onde passa tempo em suas meditações. Sofia passa a visitá-lo mesmo continuando o namoro com Carolino, o Bexiguinha. Este movido por desconfiança e ciúmes escreve uma carta ao Reitor denunciado o mal comportamento moral do professor. Num acidente de automóvel, em que Alberto, Alfredo, Ana, Cristina e outros tinham ido passear no dia de Carnaval, na volta, Alfredo, que dirigia, perde a direção do automóvel, bate numa árvore, e no choque a pequena Cristina morre. A morte da pequena foi traumática principalmente para a irmã mais velha, Ana, que não podendo ter filhos, via na pequena irmã uma espécie de filha. É nessa ocasião que Alfredo se decide pela adoção dos filhos de Bailote para minimizar a dor de Ana. Carolino, enciumado pela indiferença de Sofia, decide tentar resolver pela violência esse triângulo amoroso. Planeja matar o professor Alberto com uma faca, fica à espreita à noite para apanhá-lo quando chegasse em sua casa. Porém, na luta que se desenvolve, o professor Alberto mais forte e mais hábil, desarma ao Bexiguinha e põe-no a correr. Humilhado, Carolino não desiste de seu desejo de vingança e opta por matar um vértice mais fraco desse triângulo, Sofia. De fato, Carolino assassina sua namorada e foge. Preso é considerado demente. Tomás, no seu vigor de homem do campo, chega a ter dez filhos. A mãe de Alberto morre de velhice. Toda essa situação força Alberto a deixar Évora por uns tempos, vai para o Faro, bem ao sul de Portugal, onde se casa, tem filhos, adoece e deixa o ensino. Anos depois inicia sua narração, solitário, no casarão paterno.



Sites de referência:
http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaPortuguesa/Contemporanea/Vergilio_Ferreira_Aparicao


http://www.eduardolourenco.com


Referências bibliográficas:
FERREIRA, V. Aparição. São Paulo: Difel, 1983.

FLORY, Suely.O romance-problema e o problema do romance na obra de Vergílio 
Ferreira. São Paulo: HVF Representações, 1993.







terça-feira, 20 de março de 2012

Manhã Submersa. Vergílio Ferreira


"Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isto a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta e que eu não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a importância que eu lhes dera". "Manhã Submersa"



Manhã submersa é um romance de Vergílio Ferreira publicado em 1954. A história do livro relata a trajetória de António Santos Lopes, uma criança de família pobre que, por ser inteligente, é obrigado a estudar num seminário. O narrador do romance é o próprio António Santos Lopes adulto, essa personagem já havia aparecido no romance Vagão J, de 1946. Manhã Submersa é uma obra de ficção, porém  com caraterísticas de um romance de aprendizagem, e um  cunho autobiográfico. É o sexto romance de Vergílio Ferreira, que costuma ser lido como uma espécie de preâmbulo aos outros romances porque deixa aparecer o pensamento do autor sobre a existência e seus caminhos. Nas primeiras páginas do romance já se observa um jogo divertido em que Antônio dos Santos Lopes, personagem narrador, diz ser este seu nome de lei, mas seu verdadeiro nome é Antônio Borralho. Ao  referir-se ao romance  Vagão J, Vergílio Ferreira deixa aberta uma porta para o leitor: a que descortina um certo encadeamento entre a sua e suas personagens; e entre, pelo menos, o assunto tratado e a emoção, ou a filosofia, ou a angústia. Isso também, por outro lado, pode levar a considerar uma dose de interdição quanto ao “conteúdo” do que vai ser revelado pelo narrador. Vergílio Ferreira é sabidamente um representante português do existencialismo, porém com originalidade suficiente para afastar o dogmatismo que possa ter herdado dos franceses, especialmente Camus, Sartre e Malraux, sem falar nos filósofos Kierkegaard, Jaspers e Gabriel Marcel. Da leitura de suas obras, e, dentre elas, sobretudo, Manhã submersa, pode-se perceber o tom comum a suas personagens, como fica evidente no seguinte trecho: “Falo agora à memória destes últimos vinte anos e pergunto-me que destino atravessou a minha vida além desse pavor, que outra voz mensageira lhe chamou ao futuro além da voz de uma noite sem fim” (p. 15). Solidão, sombras, tristeza, terror, silêncio, noite, dor, ódio são temas verbalizados correntemente, tal como no relato sombrio de Manhã submersa, que conta a luta para livrar-se do seminário e voltar à vida de liberdade da infância. A infância do narrador não fora nem tão feliz para ser tão lembrada e tão querida, vai-se sabendo no decorrer da leitura. A posição social da família, a pobreza, a orfandade, talvez (o pai do personagem não aparece), a distância em que viviam dos meios civilizados, a rusticidade dos seus parentes etc. ou a falta de carinho, quem sabe... tornaram Antônio Borralho um ser imaginativo e pessimista. Manhã submersa é um romance autobiográfico, sem dúvida, pois sabe-se que aos dez anos o autor entrou para o seminário, não seguindo porém a carreira eclesiástica. Ele questiona as regras duras, a perda de liberdade, a vocação, a existência de Deus e a violência da realidade. O humanismo integral que transparece na obra de Vergílio Ferreira, sem distinguir o ensaio da ficção, parte de uma convicção preliminar: o sujeito está no mundo e só no mundo deve procurar respostas para as indagações que faz. Por isso mesmo, a existência se transforma num prodígio e numa tragédia. Num prodígio porque é uma forma suprema de alegria. E numa tragédia porque apenas dentro da existência (e não fora dela) deve o sujeito indagar-se e conhecer-se. Tal indagação, restrita aos limites da condição humana, gera angústia existencial. Em qualquer caso, é sempre a condição humana que se deve levar em conta, sem deuses ou estereótipos. Em outras palavras, o sujeito deve contemplar-se face a face, deve “aparecer” no discurso que descreve, representa e constitui a própria subjetividade. Isso porque o absoluto está nele e não em outros valores que possam pensar por ele. 

Referências Bibliográficas:

Ferreira Vergílio, Manhã submersa. 13 ed. Venda Nova: Bertrand Editora, 1987.

GODINHO, Hélder. O universo imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa: Lisboa Editora, 1985. Série Literatura, 13.

segunda-feira, 19 de março de 2012

"A Face Sangrenta-Contos" Vergílio Ferreira


 “Não se pode imaginar uma cor, fora das cores do espectro solar. Não se pode
ouvir um som, fora da nossa escala auditiva. Não se pode pensar, fora das
possibilidades da língua em que se pensa.” Vergílio Ferreira.



O conto ocupa um lugar secundário na obra de Vergílio Ferreira, aliás, o  lugar  relativamente marginal do conto na escrita vergiliana é reconhecido pelo próprio escritor quando  expressamente declara:  "Escrever  contos foi- me  sempre  uma  actividade  marginal  e  eles  revelam  assim  um  pouco  da desocupação e do ludismo". A primeira coletânea de oito contos do autor, redigidos em datas distintas, surge em 1953, sob o título de "A Face Sangrenta", depois do romance "Mudança", embora  ainda  com  certa  herança  da  etapa  neo-realista. Mais  tarde,  em  1972, publica novo  volume  de  contos,  em  Apenas  Homens (Inova),  onde  já  figura  o conto "A Estrela". Em 1976, publica o volume de "Contos" (Arcádia), depois reeditado nas obras do autor publicadas pela Bertrand. Por fim,  em  1986,  Vergílio Ferreira edita  uma  obra  híbrida, emparceirando  contos  e  poesia, sob  o  título  de  "Uma Esplanada  sobre  o  Mar".


Referência bibliográfica:
FERREIRA Vergílio, A FACE Sangrenta. - Lisboa: Contraponto, 1953

domingo, 18 de março de 2012

"Mudança." Vergílio Ferreira

Os grandes sistemas do pensar, da ciência, as grandes correntes literárias e artísticas, os grandes ideários políticos ou religiosos. Tudo passou. Restos detritos fragmentos. Toma o teu bocado e senta-te no vão de uma porta a comê-lo. Vergílio Ferreira



Como Sartre, Vergílio Ferreira manteve-se distante em relação às correntes como o surrealismo, marxismo, psicanálise. O existencialismo, muito pelo contrário, infiltrou-se nos seus romances. No ano 1949, Vergílio Ferreira escreveu o romance Mudança, cujo título, por si só, já indica uma viragem. Com esta obra o escritor começa a conquistar a sua voz própria. No entanto, em muitos aspectos é  Mudança um dos mais bem conseguidos romances neo-realistas Este romance é o mais ambíguo, uma vez que Carlos, a personagem principal de Mudança, é já, como escreve Lourenço, um herói existencial, a antítese do herói neo-realista.  É na sua boca que Vergílio Ferreira põe as meditações existenciais que caracterizarão em seguida os seus romances. O romance "Mudança" começa com uma forte chuva sobre uma aldeia de Portugal. A partir daí começam a serem apresentados os personagens principais. Carlos Bruno, advogado e herdeiro de uma fábrica de tecidos. Berta, noiva de Carlos Bruno. Berta e Carlos vivem uma situação conflituosa em razão de suas personalidades e de sua formação. Carlos é filho de José Bruno e tem um irmão, Pedro. Carlos vai à Universidade ao passo que Pedro fica trabalhando com o pai. De início temos o conflito entre os irmãos, decorrentes de suas perspectivas diferentes. Além do que Carlos é filho legítimo e Pedro é bastardo. O pai suicida-se após uma crise financeira que o leva à ruína. Na nova condição que se estabelece, Carlos sente-se agora igualado e mesmo até inferiorizado a Pedro. Pedro, após a morte do pai, transforma-se num marxista, defensor das causas sociais. Carlos tenta a carreira política, mas motivado por desejo de poder e prestígio. Cardoso, pai de Berta, e que trabalhava como guarda-livros do pai de Carlos, acaba enriquecendo com a guerra (II Guerra Mundial), compara a fábrica arruinada e o casarão de Villarim, onde morava a família Bruno.Durante o namoro e o noivado com Berta, Carlos tem um comportamento mais romântico com Berta. Após o casamento, a inversão dos papéis sociais, agora é Berta quem é rica e Carlos um pequeno advogado de província, resulta numa transformação da relação entre ambos. Carlos passa a querer dominar Berta como forma de recuperar seu poder, esta sentindo-se sufocada e reprimida acaba dando ao marido a suspeita de que tem um amante, Raul. Num crescente de deterioração das relações entre Carlos e Berta chegam à separação. Berta vai para Villarim e Carlos fica só na casa da Castanheira. Seu único amigo é o cão Dick, que, no entanto, morre atropelado. O enterro do cão é para Carlos simbolicamente sua própria morte. Berta ao visitar o escritório de Carlos acabam conversando sobre um processo judicial em que a mulher matara o marido porque ele não era o mesmo. Carlos pergunta: “Que fazias tu no lugar dela?” E Berta responde prontamente: “Matava-o também.” Noutra ocasião Berta trava um diálogo com um vendeiro, Sr, Roberto, quando comprava veneno para ratos: “Não me diga que se quer suicidar. Ou que é para matar alguém?” E Berta responde: “Senhor Roberto. Que graça de mau gosto!” O romance termina com Berta diante de uns cubos de queijo e a porção de veneno e relembrando as várias frases que insinuam a morte de Carlos: “Matava-o também”. “Não se diga que é para matar alguém?”, “Ouça Berta”, “Faz parte da vida que te condena e anula”...


Referência bibliográfica:

FERREIRA, Vergílio: Ansiedade/Angústia e a Cultura Moderna. Colóquio/Letras, 63, setembro de 1981


"Vagão J". Vergílio Ferreira

Só as vizinhas deram pêsames a Joaquina Borralho que sentiu uma comoção violenta e não chorou. Todavia Chico Borralho fora seu, dele tivera filhos e filhos, lutara com ela, Joaquina amava-o do coração. Mas não chorou, mulher dura, a vida cria calos na gente, não vale a pena chorar. "Vagão J"



Manuel Borralho, um homem pobre, sujo, porco e mau, por sentir inveja de um rapazola de nome  Bogas, dá-lhe uma facada à traição. Vai para a prisão. Passa lá um mês. Manuel Borrralho só pensa em voltar e acabar com Bogas quando sair dali. É assim que se desenrola o espaço mental da personagem mais caricata de Vagão «J», de Vergílio Ferreira. Manuel, assim como todos os outros Borralhos, não vale nada. Assemelha-se a um animal. Joaquina, a mãe dos Borralhos, só serve para parir. Gorra vem do Brasil para fazer um despacho ao desgraçado do Chico Borralho, o pai de família que, por estar aleijado de uma perna e por não trabalhar, não merece a vida . Os Borralhos são todos da ralé, todos padecem desse grande mal que é a pobreza. Por conseguinte, enfrentam o mundo com as armas que têm. O crime, e a violência são algumas dessas armas. Vagão «J» é uma obra neo-realista,  com o passar dos anos, Vergílio Ferreira foi abandonando a temática social como: o operariado, a pobreza, a burguesia, o dinheiro, a falta do dinheiro, etc. Os Borralhos não se inserem na lógica dos coitadinhos que precisam de um valente marxismo para pôr a coisa no local certo. Não. São maus. São criminosos. E vivem na lama. Vagão «J» é um livro muito bem escrito, tem muita piada. A linguagem de época é fantástica, as expressões dos "primatas" são saborosas. Enfim, uma excelente narrativa. O romance começa com as personagens de uma feira livre numa cidadezinha de Portugal. A partir desses personagens populares começa a se destacar a família dos Borralhos.Os Borralhos estão na posição mais inferior da escala social, são miseráveis e também são considerados ladrões pela maioria da população: “Manuel Borralho pertencia à família dos Borralhos, que eram ladrões, ladrõezinhos reles, se multiplicavam como cogumelos”.A família Borralho era constituída por Chico Borralho, o pai, que perde uma perna num acidente numa pedreira. Inválido, sem poder trabalhar, transforma-se num peso para a família, ainda mais que é dado às bebidas. Joaquina Borralho, a mãe, mulher vulgar e inculta, que tenta fugir da miséria pelos meios menos adequados, incentiva, por exemplo, a filha a roubar coisas nas casas em que trabalha como empregada. Quando o marido morre e os filhos ficam mais velhos parte para Lisboa com Calhau, um agregado da família e seu irmão Gorra.Manuel Borralho, é o filho mais velho. Numa briga esfaqueia outro homem, o Bogas. É preso por um mês. É apaixonado por Maria do Termo, que não lhe corresponde o sentimento. Como o pai, embebeda-se freqüentemente e se mete em confusões. Por ciúmes de Maria do Termo assassina o Dr. Soeiro, pessoa de classe social elevada na cidade. Preso pelo crime é condenado ao degredo. Ao voltar muitos anos depois, encontra Maria do Termo transformada em prostituída decadente e acabam vivendo juntos.João Borralho, outro filho de Joaquina, passa por vários empregos. Casa-se com Gornicho. É do tipo trabalhador, mas daqueles que estão sempre sendo explorados sem chegar a tomar consciência disso. Sua revolta com o Mundo é a de um simples.Joaquim, quando criança desejava ter um papagaio de seda, nunca o teve. Arruma emprego de operário numa fábrica. Será sempre um operário, mas isso já é um progresso para as perspectivas sociais oferecidas aos Borralhos.António Borralho, o caçula. É o único que consegue ir à escola. Dona Estefânia o protege, pois pretende encaminhá-lo para o seminário. Já no seminário, num acidente com fogos de artifício perde a mão e volta para casa com os seus sonhos desfeitos.
Maria Borralho, a filha mais velha, trabalha na casa de D. Estefânia. Por incentivo da mãe rouba a despensa. Engana o filho da patroa com algumas carícias para receber alguns presentes. Acaba grávida de um rapaz pobre e casa-se com ele.Calhau, agregado dos Borralhos. Corcunda, torto, cigano. Acaba por ter um relacionamento com Joaquina, e chegam juntos a planejar a morte de Chico Borralho.Família que luta contra a fome, a quem falta toda sorte de instrução e cultura, vivem no limite entre a humanidade e o animalesco.Por outro lado, temos as pessoas que se contrapõem aos Borralhos pela condição social: Dr. Soeiro (homem de muitos poderes), Sr. Joãozinho (que junta dinheiro para comprar uma casa nova na Quinta), Sr. Castro (que tem muitas propriedades) e D. Estefânia.Na escola, António Borralho ganha a simpatia do professor, este é quem dava caderno e lápis para o menino poder estudar. O professor demonstrater uma visão crítica da sociedade em que vive.Ti Ana, mãe de Maria do Termo, teve esta “filha de um patrão qualquer”. Maria não cede aos apelos de Manuel Borralho, mas se deixa enganar pelo Dr. Soeiro. Assim a filha repete a situação da mãe.Chico Borralho sentindo-se um peso para a família e muito amargurado pela sua condição, suicida-se atirando-se sob as rodas da camioneta que o levava ao médico.

"Onde tudo foi morrendo". Vergílio Ferreira

Sou do Alentejo como da serra onde nasci, a mesma voz de uma e de outra ressoa em mim: o espaço, a angústia e a solidão. Vergílio Ferreira. 


Vergílio Ferreira é reconhecido por parte da crítica literária como pertencente à geração de intelectuais portugueses do fim dos anos 30, atrelada ao neorrealismo. Esse movimento surgiu como um questionamento referente ao contexto da crise pós-Primeira Guerra Mundial, no qual esses intelectuais atentaram para uma necessidade de intervenção na realidade social portuguesa através da arte. Com um forte viés marxista, eles evidenciaram uma necessidade de mudança da realidade a partir de um diagnóstico de maior empobrecimento das classes sociais em Portugal, assim como de um considerável aumento da miséria no campo e, consequente, êxodo rural, aliado à institucionalização do regime totalitário, figurado por Antônio Salazar (1933-1974). O neorrealismo, representado pela Seara Nova, revista emblemática desse grupo, também esteve em oposição à revista Presença, do grupo liderado por José Régio e demais continuadores da geração de Orpheu, que pregava a “arte pela arte” sem um compromisso político-social como centro de criação e que assegurava a importância do dogma individualista, ou seja, compromisso do artista consigo mesmo para fazer arte com qualidade. A literatura de Vergílio Ferreira criticou o determinismo e escapou do enfoque sociológico dos intelectuais de antes. A luta contra a marginalização social não seria mais reconhecida somente na coletividade,  mas na individualidade, nas singularidades de cada ser. "Onde tudo foi morrendo é o segundo dos três romances neo-realistas do Autor, foi  proibido e apreendidos pela polícia os exemplares possíveis. Já o livro anterior "O caminho fica longe", já havia sido também recolhido pela polícia. A  capa do livro foi desenhada por  Regina Kaspizykowi, companheira de Vergílio. A primeira dúzia de linhas constitui um dos mais belos e incisivo ponto de partida na ficção literária portuguesa: "Pela janela aberta vem a poesia da dispersão. Tudo se calou naquela hora sombria. E longa. As árvores quedaram-se, transidas de frio, de braços nus erguidos ao céu. Mas o céu escondera-se porque os ventos lhe tinham desdobrado nuvens espêssas pela curva abatida. Então os homens ficaram tristes, olhando, em silêncio, a planície sem fim. Rostos enegrecidos, barba crescendo, negra e negra, sempre crescendo, olhos necessitados inundando o ar...Pelo céu recôncavo ecoam uivos fundos de cães que choram lá para as bandas do cabo do mundo. Lamentos de uma angústia tôrva. Por isso o azul do céu foi sorrir para as terras do Sol. E a aldeia começou a fugir também para as terras do Sol. Só aquela janela aberta olha a tristeza das árvores abandonadas e derrama na saleta escurecida a desolação do Outono. [...]"

Referências Bibliográficas:

LISBOA, Eugénio. Poesia portuguesa: do Orpheu ao Neorrealismo. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986.

GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo. São Paulo: USP, 1993.

quinta-feira, 15 de março de 2012

"O caminho fica longe" Vergílio Ferreira




"Quero é aproveitar o tempo, eu que estou em mim para estar todo no que te digo.
Uma vontade absoluta de te amar, que o absoluto é a medida humana, é assim.
Atravessei o horror e a humilhação. Atravessei a miséria e o que nela apodreceu do
meu corpo terrestre. Lembro-te, penso-me. Está uma noite quente, deve ser o fim
do verão. Lembro-te agora intensamente e a tua perfeição está no fim do meu
lembrar. Esta-se lá bem, no lembrar". Em nome da terra,  (Vergílio Ferreira)


Os três primeiros romances escritos e publicados por Vergílio Ferreira, O caminho fica longe, Onde tudo foi morrendo  e Vagão “J”, apresentam um tom neo-realista que revela o conturbado momento sócio-histórico da época, vivenciado pelo Autor. Contudo, podemos perceber nestes três primeiros livros que a matéria romanesca usada pelo escritor não é de cunho estritamente sóciopolítico e ideológico, pois interessa também ao autor desenvolver uma matéria narrativa que desenvolva aspectos pertinentes  à condição existencial  do ser humano. Assim, Vergílio Ferreira estrutura suas obras ficcionais até o romance Cântico final. O Caminho Fica Longe, é pouco conhecido por causa da sua proibição pela censura, que apreendeu a maioria dos exemplares do livro antes de serem vendidos nas livrarias. Segundo declarou o próprio autor Vergílio Ferreira, não é um romance representativo na sua obra nem poderia ser publicado hoje sem grandes modificações.  Apesar de que esta obra é geralmente classificada como uma obra da primeira fase neorrealista, não devemos rotulá-la porque pela sua juventude (23 anos) de Vergílio, não existiria ainda (aliás, como ele mesmo reconhece) a intencionalidade de inscrever-se numa ou noutra escola, senão que imitaria por inércia a prosa anterior já mais consagrada, a da geração da Presença. Quanto ao fato de se inscrever neste movimento, o autor reconheceu que era devido ao contexto (fim da Segunda Guerra Mundial) e à existência do "mito do comunismo" entre os membros da sua geração. Ele, como outros autores, acreditava nisso que depois definiu como "uma religião" e só com o tempo decidiu não fazer parte do PCP e afastar-se. Apesar disso, o autor não chega a militar nunca contra o comunismo

Referências bibliográficas:


FERREIRA, Vergílio - O Caminho Fica Longe. Lisboa: Editorial Inquérito, 1943

FERREIRA, Vergílio. Em nome da terra. 9.ed. Lisboa: Bertrand editora, 2004.

PAIVA. José Rodrigues de. O lugar de Vergílio Ferreira na literatura portuguesa do
século XX. Recife: Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 2006.


quarta-feira, 14 de março de 2012

“A Curva de Uma Vida” Vergílio Ferreira



“ Um diário. Uma carta. Ou simplesmente as memórias. Nós
lemo-las com um prazer diferente de uma obra de arte ou mesmo
da arte que está nelas. Não é bem o de saber o que aconteceu,
mas o de estarmos nós acontecendo nisso que aconteceu.
Ou seja, de prolongarmos a nossa vida até lá.”
Vergílio Ferreira


Eça de Queirós achava que se deviam publicar de um homem célebre até as "contas do alfaiate". Quem conta isto é o escritor Vergílio Ferreira num dos volumes do seu diário "Conta Corrente", a propósito de uma discussão que teve com a sua mulher, Regina Kasprzykowski, sobre se é lícito ou não publicar o que um autor rejeitou. Para Vergílio Ferreira, "um autor não dá garantias quase nenhumas  (quando grande autor) sobre a valia do que realiza. E não há obra medíocre alguma de um autor que lhe destrua a obra superior." O escritor (Vergílio)  foi mais longe: "Saber como se errou, progrediu, hesitou - tudo são modos de ampliar o conhecimento de um autor. De qualquer modo, se um artista não quer que se lhe conheça a obra, destrua a ele". Vergílio Ferreira não destruiu a sua e deixou o acervo tão organizado que só poderia estar a pensar no futuro.  A curva de uma vida é o primeiro livro de Vergílio Ferreira, datado de 1938, uma novela, nela aparecem já os grandes temas que marcariam a obra dele: a ausência do pai, a figura da mãe, a culpa, a busca da identidade. Nesta novela, Vergílio conta a história de uma personagem cuja descoberta de que não é quem pensa ser e das consequências disso na avaliação que faz da mãe o leva a adotar um comportamento eticamente reprovável: a violação da irmã, adolescente, do seu melhor amigo do liceu, que entretanto se tornou advogado e que ele contrata para o defender em tribunal, desconhecendo a identidade da moça. “A Curva de Uma Vida” foi descoberto no espólio do escritor. O leitor encontra já nesse primeiro livro de Vergílio Ferreira uma poderosa capacidade de escrever: " O criado João tinha sorrisos largos mas o coração era manso como o dum boi". Há também o trecho: "...corava quando me presenteava com bons pêssegos moles e sumarentos, que ele tratava com um amor silvestre. Tudo nele era inculto: as unhas, o cabelo e a bondade". O que há no livro e não mais deixaria de haver em toda a obra de Vergílio Ferreira é descrição essencial da vida e do homem, as necessidades e contigências insensíveis, os desejos e medos sensíveis ao humano: "Surpreendendo a mãe na cama com o seu próprio cunhado, Amadeu, o olho furioso, na ânsia de se fartar de verdade conta: não via minha mãe, via uma mulher e admirei-lhe os contornos mal cobertos. Pelos meus nervos andaram gozo infernais". O leitor arrepia-se incestuosamente ali, impúdico e inconveniente.

Site de referência:

http://www.publico.pt/Cultura/novela-inedita-de-vergilio-ferreira

Referência bibliográfica:

FERREIRA, Vergílio – “A Curva de Uma Vida”. Lisboa, Quetzal Editores, 2010




domingo, 11 de março de 2012

"Aprendi a montanha ao nascer, tive a primeira noção do mar na infância e fiz uma longa aprendizagem da planície na idade adulta. Hoje tenho o país todo dentro de mim e sinto-o circular-me nas veias ao pulsar do coração" Vergílio Ferreira.



Vergílio Ferreira e sua obra:


Vergílio Ferreira com o sangue quente da juventude nas veias, foi, como tantos outros, sensível à «urgência» da «questão social», no entanto, logo se deu conta que «nem só de pão vive o homem» e de que lá, no fundo dele, lateja o grito surdo do seu  interrogar, do que é realmente importante, segundo ele, o único problema essencialmente humano e que subsiste mesmo quando todos os demais tenham sido eventualmente resolvidos. E foi como Vergílio Ferreira passou de uma arte visando um problema  dos  homens (o neo-realismo) para uma arte exclusivamente dedicada ao homem-problema. Mesmo sabendo que não é uma solução que visa, mas "gastá-lo"(o problema), até que o sofrer-se homem se torne mais suportável. E neste original interrogar-se a si e não aos outros, foi erguida a obra de Vergílio Ferreira. Esta transição de uma problemática social para uma outra, a da radicalidade existencial, do Vergílio-indivíduo girando sem fim em torno do «eu» de si mesmo. A passagem, enfim, de uma literatura marcada ainda  pelo tom ideológico para uma outra alimentada pelas «ideias de sangue». No caso de Vergílio Ferreira, a aventura criadora complica-se, pois a sua referência inicial é a de Eça de Queirós, seu itinerário é a história de um afastamento contínuo de Eça sem jamais o perder de vista. Tendo o romance como consciência crítica do mundo, Vergílio Ferreira fez a síntese, tanto no romance como no ensaio, de uma aguda e permanente capacidade de sentir a dupla agonia, ou o combate único,  da vida sem razão e da razão como tribunal da vida. A forma romanesca que utilizou é um monólogo entre uma consciência atenta ao seu destino social e histórico e uma consciência – a mesma – incapaz de encontrar, em qualquer forma desse destino, uma resposta para o que interroga desde a origem. Foi essa obra – ficção ou ensaio – que Vergílio  nos deixou, não como algo produzido só tecnicamente, que isso é, segundo ele, «literatura de consumo», mas como algo em que investiu a fundo, não deixando fora um pingo de «emoção» que fosse – ele jogou-se inteiro na sua obra de  interrogação, e não de um interrogar asséptico e inconsequente, como se tudo  não passasse de um mero exercício de puro enlevo intelectual. Em Vergílio Ferreira, tanto o ensaio como o romance convergem num ponto de auto-questionamento dramático, cumprindo o dever essencial do homem culto e intelectual, segundo ele, o de «interrogar o seu tempo». Todos os romances de Vergílio Ferreira, mesmo os primeiros, estão cheios do que se poderia chamar obsessão metafísica ou  pathos metafísico; os temas da angústia, da morte, do tempo, de Deus, do sentido da arte ou da história, estão presentes no seu questionar constante. A grandeza da obra literária de Vergílio Ferreira está na capacidade de interpretar e transmitir, não tanto, as formas partilhadas e equivocamente comunitárias de viver, mas um viver por inteiro e no absoluto solitário do eu, a vida que a cada um coube viver. Outro tema presente na obra de Vergílio Ferreira foi acerca do conceito de pátria, sendo pátria, segundo ele, uma comunidade de destino, em que o que se valoriza não é tanto a glória de se ter sido o que se foi, mas, sobretudo, a responsabilidade de sermos,  no futuro,  o que em nós sentimos que devemos ser.  Pátria é o modo especial de sentir, isto é o que,  justamente, nos define como povo. A história de um povo é a história de uma sensibilidade, nas múltiplas formas de sermos em concreto,  o homem que somos: "A pátria, como tudo, és tu. Se for também a do teu adversário político, já é problemático haver pátria que chegue para os dois"(Vergílio Ferreira). Esta concepção de pátria para Vergílio Ferreira, nos remete à uma ambiguidade entre uma radical singularidade do «eu» e a necessidade de um "modus vivendi" que permita a sobrevivência em ordem e em paz da vida em comunidade. Entre a essencial singularidade de cada um (aquilo que faz cada ser o que é), e aquilo que o diferencia. Portanto, achar o equilíbrio entre um mundo, que se reconhece no mundo que é o seu (o comunitário), e o apelo vivo que, no íntimo de cada eu, a radical experiência existencial reclama. a este conceito tende Vergílio a dar uma conotação de persistência no ser ao longo do tempo: "Sermos o que somos, e há tanto tempo que o somos, que não queremos nunca deixar de sê-lo ". Para Vergílio incomodava-o e o entristecia,  particularmente, a sonolência coletiva, a indiferença perante a inalienável tarefa de assumirmos a razão de sangue e de alma: "Aprendi a montanha ao nascer, tive a primeira noção do mar na infância e fiz uma longa aprendizagem da planície na idade adulta. Hoje tenho o país todo dentro de mim e sinto-o circular-me nas veias ao pulsar do coração"." É  preciso desideologizar a vivência comum, porque uma doutrinação enrijece-nos e instala-nos no fortim do absoluto que nos aquieta.  A ideologia em que nos enquistemos toma conta de nós  e fossiliza-nos na exactidão axiomática de nós. E aí o dogma ideológico que nos invadiu o sangue e se nos consubstancializou resiste a tudo o que de sensato o queira desmentir. A alienação ideológica é como que um «estado  alterado de consciência»; ela provoca um estado demencial . Por isso, «o mínimo que de nós podemos exigir é assim a sensatez".(Vergílio Ferreira). Porém, há uma contradição entre um certo destino nacional e a certeza de que, por muito juntos e unidos  que  caminhemos,  o  fim   a  que  haveremos  fatalmente  de  chegar  é a desagregação e o silêncio. Mas essa é , a mesma aparente contradição entre o “ser-para-a-morte, e o ser homem até onde mais sê-lo não se possa. "É que o homem é excesso, ele é demais para a sua medida. O homem é, em sonho, a imortalidade da sua real mortalidade, e a razão para se ser homem quando nenhum destino à altura do seu sonho o aguarda,  quando do lado de lá do mundo só o silêncio definitivo, é exatamente a mesma razão para que um povo o seja. E que razão é essa? Nenhuma. É como se o nosso destino coletivo se fizesse do esforço de todos para termos razão para a um destino merecer. Como se houvesse o subterrâneo fio de esperança  de que possa valer a pena vivermos como povo, como cada um deve viver-se: nos territórios da dignidade e da honra". (Vergílio Ferreira).




Referências bibliográficas:

CUNHA, Carlos M.F. da,  Os mundos (im)possíveis de Vergílio Ferreira, Difel, Algés, 2000.

DAL FARRA, Maria Lúcia,  O narrador ensimesmado : o foco narrativo em Vergílio Ferreira, Ática, São Paulo, 1978 

GORDO, António da Silva,  A escrita e o espaço no romance de Vergílio Ferreira, Porto Editora, Porto, 1995. 

GOULART, Rosa Maria B, Romance lírico : o percurso de Vergílio Ferreira,  Bertrand Editora, Lisboa, 1990. 

Site de referência: 

http://www.lusosofia.net

quarta-feira, 7 de março de 2012

"Trago em mim a força monstruosa de interrogar". Vergílio Ferreira


VERGÍLIO FERREIRA:


Vergílio Antonio Ferreira nasceu em Melo, no concelho de Gouveia, em Janeiro de 1916, filho de Antonio Augusto Ferreira e de Josefa Ferreira. A ausência dos pais, emigrados nos Estados Unidos, marcou toda a sua infância e juventude. Por sugestão dos familiares, frequenta o Seminário do Fundão durante seis anos.Saiu para completar o Curso no Liceu na cidade da Guarda. Ingressa em 1935 na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra, onde concluiu o Curso de Filologia Clássica em 1940. Dois anos depois, terminado o estágio no liceu D. João III, nesta mesma cidade, parte para Faro onde iniciará uma prolongada carreira como docente, que o levará a pontos tão distantes como Bragança, Évora e Lisboa. Vergílio reuniu em si diversas facetas, a de filósofo, a de escritor, a de ensaísta, a de romancista e a de professor. Contudo, foi na escrita que mais se destacou, sendo um dos intelectuais portugueses contemporâneos mais representativos. Toda a sua obra está impregnada de profunda preocupação ensaística. Vergílio foi também um existencialista por natureza. A sua produção literária reflete uma séria preocupação com a vida e a cultura. Ele confessou em "Invocação ao meu Corpo" (1969) trazer em si “ a força monstruosa de interrogar”, mais forte que a força de uma pergunta. ”Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta a espera para que a vida continue. Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação”. Este pensador tecia reflexões constantes acerca do sentido da vida, sobre o mistério da existência, acerca do nascimento e da morte, enfim, acerca dos problemas da condição humana. Após sua morte, ainda nos restou o imenso homem, que ficou dentro da obra, pois, como o próprio declarou: "O autor nunca pode ser dissociado da sua obra porque nela vive, respira e dela fica impregnado". Vergílio entregava-se à escrita de corpo e alma, tinha essa obsessão; após a qual se sentia vazio, mas depois de um livro voltava a renovar-se para dar corpo a outro. “Escrever, escrever, escrever. Toma-me um desvairamento como o de ébrio, que tem mais sede com o beber para o beber, ou do impossível erotismo que vai até ao limite de sangrar. Escrever. Sentir-me devorado por essa bulimia, a avidez sôfrega que se alimenta do impossível”.(Pensar, 1992). A obra de Vergílio Ferreira recebeu influências do existencialismo de Satre, de Marco Aurélio, Santo Agostinho, Pascal, Dostoievski, Jaspers, Kant e Heidegger. Os clássicos gregos e latinos como Ésquilo, Sófocles e Lucrécio, também assumiram uma importância vital nos pensamentos deste escritor. No livro "Mito e Obsessão na Obra de Vergílio Ferreira", Eduardo Lourenço afirma que: “faz parte que se considere Vergílio Ferreira numa perspectiva ideológica, como autor de ruptura e tentativa de superação e reformulação do ideário neo-realista; numa perspectiva metafísica, como romancista do existencial no sentido que ao termo foi dado pela temática chamada existencialista; e, finalmente, numa perspectiva simbólica, como romancista de uma espécie de niilismo criador ou, talvez melhor, do humanismo trágico ou tragédia humanista”. Os romances "Uma Esplanada sobre o Mar" (1987), pelo qual recebeu o prémio da Associação Portuguesa de Escritores, e Em Nome da Terra (1990) retomam o tema da transitoriedade da vida, sujeita ao passar do tempo. Em 1993 edita em "Na Tua Face", uma das suas obras mais exemplares, em que desenvolve uma reflexão aprofundada acerca da beleza e da sua transitoriedade. Este escritor, que aos 80 anos declarou “ vou entrar a escrever no paraíso”, faleceu em 1 de março de1996. Deixou um livro entregue ao editor, publicado posteriormente intitulado "Cartas a Sandra" (1996), em que se pode reencontrar a personagem Xana, filha do narrador do romance"Para Sempre", apresentando ao leitor cartas escritas pelo pai à sua mãe. Após a morte do escritor a Câmara Municipal de Gouveia e a Universidade de Évora criaram prêmios literários em memória de Vergílio Ferreira. O espólio do escritor composto por prémios, livros e alguns objetos pessoais foi doado a Gouveia, concelho de onde Vergílio Ferreira era natural e estão em exposição na Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira. O seu espólio de originais manuscritos de quase todos os seus romances foi doado à Biblioteca Nacional.

SITE DE REFERÊNCIA:


terça-feira, 6 de março de 2012

“ A maior alegria de que me lembro, é a de estar vivo: e a maior dificuldade também”.Vergílio Ferreira


Existencialismo:


O existencialismo pode entender-se como corrente filosófica (e literária) que defende a vivência e a consciência subjetiva na sua interioridade, em detrimento das metafísicas essencialistas associadas aos grandes sistemas conceituais.  Por inspiração dos filósofos alemães (Husserl, Heidegger, Jaspers), sentem-se os primeiros ecos a partir da I Guerra Mundial, tendo atingindo o seu auge nas décadas de 50 e 60. Na sequência de II Guerra Mundial e do clima que se fazia sentir, os temas em discussão na época eram evidentemente propícios à difusão e popularidade do existencialismo, sobretudo entre os jovens universitários e os intelectuais. O existencialismo, neste contexto, aparece como fruto da derrocada de valores e imperativa necessidade de reordenação do humano no universo.   A fama do existencialismo surge por iniciativa do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), considerado o seu principal representante. Sartre,  inspirado por Heidegger, faz  da existência uma finitude radical ao afirmar que «A existência precede a essência», crença que o levou a sustentar que o ser humano é liberdade absoluta no sentido em que, enquanto ser pensante, se vai fazendo ou construindo a si mesmo, pois o homem já não tem uma essência que o delimite. Estamos, naturalmente, na presença de um existencialismo ateu de que Sartre  foi o mais conhecido defensor. Em campos opostos surge o filósofo Gabriel Marcel (1889-1973), por sua vez representante do existencialismo cristão,  sobretudo a partir da publicação do artigo Existência e Objetividade, consolidando-se a sua doutrina em obras anteriores como Ser e Ter (1935) e Homo Viator (1945). A tese fundamental do pensamento de Marcel consiste na ideia de que existir é ter em conta o mistério, o transcendente. Para este autor, o existente está rodeado de mistério do próprio Ser e ao qual, pelo esforço e conquista, é capaz de melhorar-se. A liberdade humana consiste na invocação do Ser e no reconhecimento de que só neste o homem verdadeiramente se pode encontrar em situações de conforto e paz, presumindo assim que o ser seja dotado de generosidade e acolhimento. Sob um ponto de vista filosófico talvez seja preferível falar-se em filosofias da existência. Aquilo a que chamamos “existencialismo” aparece sob a forma de doutrinas revestidas de conceitualizações profundas e íntimas, como por exemplo, no “sentido da angústia existencial” de Kierkegaard  (1813-1855), um filósofo considerado seu percursor. Pode ainda entender-se como uma corrente que tem como objeto o esclarecimento das questões existenciais da vida humana, por exemplo, como acontece em Karl Jaspers (1883-1969). Será preferível falar em filosofias da existência a existencialismo, visto alguns dos filósofos mais importantes da filosofia do século XX, como Martin Heidegger (1889-1976) e Karl Jaspers não quererem ser qualificados de meros existencialistas, pela suspeita de este ser um termo reducionista. O termo Filosofias da existência, usado no plural, deixa transparecer alguma abertura,  uma vez que se trata de pensamentos que analisam a existência enquanto realidade ou existência humana. Deste modo, todo o existencialismo será filosofia da existência, mas nem toda a filosofia da existência é existencialismo. Se pensarmos no pensador alemão Martin Heidegger, os termos existencialismo e filosofia da existência são inadequados, pois este pensador considera que a interrogação metafísica deve ser posta no seu conjunto, enquanto busca incessante pela questão do ser. O existente, Dasein ou Ser aí, é o “projecto” do pensador para chegar à questão fundamental que é a questão da revelação do Ser. Sendo assim, estamos no domínio de uma existência com conotações ontológicas, isto é no domínio existencial, em que o existente, o Dasein participa e assume as reações de toda a ordem em busca do ser em geral, ou seja, é o existente concreto que possibilita a ontologia geral. Todavia, o termo existencialismo pretende colocar em relevo as características irredutíveis da existência humana. É uma espécie de regresso à existência tal como é vivida e nisto se assemelha à filosofia existencial, na medida em que esta coloca a realidade como uma espécie de objeto que, na presença de um sujeito com existência, tenderá a que este participe na realidade com as suas reações sentimentais e passionais face às coisas; para esta corrente o que importa é o homem nas suas vastas dimensões, pois importa saber o que fazer com ele e  a vida que lhe coube. É sempre do homem concreto que nos fala, do homem sujeito à morte, nas suas relações com o mundo e com os outros, buscando um sentido para o existir. Dar uma definição de filosofia da existência é complexo, mas não de todo absurdo, pois há qualquer coisa que a distingue das outras, sobretudo no que concerne a uma característica fundamental. Trata-se do privilégio da existência sobre a essência, mas também das experiências íntimas e subjetivas do humano, tais como a angústia, a náusea, a liberdade. Contudo, é tarefa vã reduzir as filosofias da existência ou o existencialismo a uma única definição, pois seria demasiado redutor, nela não caberia o que maioritariamente as caracteriza, ou seja, o ensejo de tornarem a vida humana possível no seio da liberdade e da subjetividade.



Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola, Introdução ao Existencialismo, Preâmbulo e tradução de João 
Alves, Lisboa, Ensaio Editorial Minotauro

HAAR, Michel, Heidegger e a Essência do Homem, Lisboa, Instituto Piaget, 1990,

MALRAUX, André,  A Condição Humana, Tradução e Prefácio de Jorge de Sena, 
Lisboa, Edição Livros do Brasil

SARTRE, Jean - Paul, O Existencialismo é um Humanismo (1946), prefácio e tradução 
portuguesa de Vergílio Ferreira, Lisboa, Bertrand Editora, 2004

Site de referência:

http://repositorio-aberto.up.pt

domingo, 4 de março de 2012

Tudo o que se tem é a vida dada gratuitamente e sem explicação.



“Se durante o dia o vôo dos pássaros parece sempre sem destino, à noite dir-se-ia reencontrar sempre uma finalidade. Voam para alguma coisa. Assim, talvez, na noite da vida…” Camus


Albert Camus deixou profundas marcas na história do pensamento humano. Seus ideais retratam posturas de alguém que, a despeito da absurdidade da vida, tem prazer por desfrutá-la plena e incessantemente não se permitindo abater pelas dificuldades que se levantam, mas, ao contrário, nelas encontrando forças para alcançar grandes objetivos. De fato, sua vida e obra evidenciam o espírito empreendedor que o impulsionava à constante luta de reconstruir sobre os escombros. A primeira mensagem que Camus nos transmite em sua obra é a de como retirar das situações mais negativas da vida a lição e a razão para modificá-las. Com o tempo, o garoto pobre tornou-se importante ensaísta, novelista, dramaturgo, filósofo e escritor, tendo dedicado sua vida, ao lado de outras ilustres personagens de sua época, a repensar os valores apresentados e impostos por uma sociedade que pouco se importava com a dignidade humana. Camus é classificado usualmente como um filósofo existencialista, embora tenha ele próprio negado esse título afirmando: "Não, não sou existencialista... e o único livro de idéias que eu publiquei´ LeMythe de Sisiph (O Mito de Sísifo), foi contra os filósofos chamados existencialistas". Seu pensamento filosófico é firmado sobre dois pilares principais: o conceito do absurdo e o da revolta. A sua definição de "absurdo" diz respeito ao confrontamento da irracionalidade do mundo com o desejo de clareza e racionalidade que se encontra no homem. Quanto ao conceito da revolta, está vinculado, em última análise, à busca inconsciente de uma moral. Nas palavras de Camus, "ela é um aperfeiçoamento do homem, ainda que cego". Para se compreender o pensamento e a vida de Camus, é preciso inseri-lo em seu contexto histórico, pois, sua filosofia foi fruto de uma realidade e necessidade latente do ambiente em que viveu. Neste contexto, tomou-se corpo e forma um movimento literário que deixou sua marca pela expressividade e participação na vida das pessoas, procurando atender aos grandes questionamentos que eram levantados. Camus escreveu uma obra imersa no real e no concreto, onde o absurdo está presente constantemente. Uma das definições de absurdo, segundo ele, seria aquilo que acontece, mas não poderia acontecer. É o impossível que se torna realidade, é o não aceitável que, embora acontecido, continua como inaceitável.  Para capturar o sentimento do absurdo, o ser precisa invocar outros sentimentos. Esses sentimentos variam do desconforto ao pessimismo até a angustia e o desespero, neste sentido, percebe-se uma forte influência de Nietzsche em Camus, seus pensamentos caminham lado a lado quanto ao abandono da condição humana e ao absurdo da existência humana. Camus tentava buscar o máximo de prazer e alegria, pois esse sim era o grande desafio para o ser humano, e não esperar essa recompensa numa vida vindoura. Para Camus, a felicidade era medida pelo prazer sentido pelo corpo, fato notadamente destacado em sua obra "Bodas em Tipasa".  Segundo Camus, quanto mais a vida lhe valer, maior será o absurdo trazido por ela. Assim sendo, felicidade e absurdo vivem em parceria, e um pertence ao outro. Para Camus  o absurdo era um abismo sem fim, colocado diante do ser humano. Para se entender a intensidade do absurdo seria preciso pular nele, para desta maneira explorar sua existência. Essa noção de absurdo, foi na verdade o motor que o impulsionou a adentrar no tema que seria o seu campo de questionamento pelo resto de sua breve vida, a revolta.  Assim, Camus era um homem revoltado que não se sentia bem com a situação absurda dos acontecimentos da vida. Para ele, o homem revoltado era aquele que descobriu o quanto frágil e perecível é  sua vida. Consciente da precariedade e da transitoriedade da vida, Camus recusa a ideia de Deus, ele diz não aceitar a noção de algo cuja existência não teria nenhum assento na realidade sensível. Ele recusa duplamente a fé como recusa a injustiça e o privilégio. O problema do mal será uma das questões centrais em todo o pensamento de Camus, ele verá como frustrada a tentativa de eliminação do mal pelo cristianismo, pois este se mostrou uma religião que aceita paradoxalmente o assassinato de um inocente, Cristo. Camus fará um jogo contrário à doutrina cristã entre o Jesus divino e o Jesus humano dizendo que enquanto Jesus era visto como Deus, seu sofrimento na sua morte era a justificação do mal no mundo.  Diz ele: "Só o sacrifício de um Deus inocente poderia justificar a longa e universal tortura da inocência. Só o sofrimento de Deus, e o sofrimento mais desgraçado, podia aliviar a agonia dos homens". Camus achava a palavra salvação demasiado grande, não há e nem mesmo é necessário salvação para o ser humano, o homem consciente sabe de sua responsabilidade e dever sobre seu próprio destino, sabe da força e fraqueza que o habitam e não aceita qualquer interferência externa. Para Camus a salvação não existe, ele afastou as soluções fáceis como remédios ao terror inspirado pela morte, seu campo vivencial é o mundo e liga a si mesmo no mundo e faz dele o seu reino. Camus amava mais a natureza do que a história. Acusou o cristianismo de dar lugar e valor privilegiado à história eliminando a relação de contemplação com a natureza mudando o seu eixo para um relacionamento de sujeição. A natureza é, para Camus, o lugar do prazer do corpo, ela é sua mediação com o sagrado. A revolta é a atualização da vida, não se tem mais deus e tudo o que se tem é a vida dada gratuitamente e sem explicação. Nesta vida, é preciso se revoltar, pois pela revolta acabamos por nos conduzir num mundo perdido e com valores que mantenham ou mesmo animem nossa dignidade. A revolta é capaz de nos fazer transcender, a única transcendência de que Camus faz conta é a luta contra o absurdo, a única capaz de reivindicar clareza e ordem num universo que parece pouco razoável. A grandeza da revolta contra todo ataque à dignidade humana reside igualmente na afirmação implícita da transcendência do espírito humano, o único capaz de julgar em nome de uma justiça que somente ele pode conceber. 

Site de referência:
http://pt.scribd.com/doc/39321696/Albert-Camus

Referências bibliográficas:
ALVES, Marcelo.  Entre o sim e não a Nietzsche. Florianópolis: Ed. Letras 
Contempor âneas, 2001. 

PECORARO, Rossano.  Niilismo. Rio de Janeiro: Ed.Jorge Zahar , 2007

Camus, Albert.O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. 5. ed. Rio de 
Janeiro: Ed. Recor d, 2008.