domingo, 23 de setembro de 2012

ser homens "até mais não..." E sê lo na esquálida razão de o ser.



José Antunes de Sousa é licenciado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa e Professor do Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares do Instituto Piaget de Almada.



Estudioso da obra de Vergílio Ferreira publicou A Questão Ética em Vergílio Ferreira (2006) e Vergílio Ferreira e a Filosofia da sua obra Literária (2009). Neste seu último livro, reflecte sobre o lugar do pensamento na criação literária, destacando as relações da literatura e da filosofia, do conhecimento e da linguagem. Em 2008 foi co-editor das actas do colóquio Vergílio Ferreira no Cinquentenário de Manhã Submersa, realizado na Universidade Católica de Lisboa em 2004.

Vergílio Ferreira e a Filosofia da sua Obra Literária:

O dizer eminentemente poético que, na prosa de Vergílio Ferreira, se diz, insinua-se nos a partir da secreta instância do tudo por dizer que nesse dizer se oculta.As suas obras, que são uma só, a romanesca, a ensaística e até mesmo a diarística, formam um quiasma vivo (o desprezo que Vergílio nutria pelas "verdades indiferentes"!), sempre naquela balbuciação em sangue de um valor que definitivamente nos pacificasse a alma.Nessa busca ansiosa de um além que importaria, além de tudo, o fosse já cá, nesta vida, e que é o valor absoluto, Vergílio Ferreira desdobra se num balanço doloroso entre o irrecusável do "homem fundamental" e o mísero destino que o espera na escuridão opaca do túmulo. E vai reclamando das estrelas um desígnio que sabe estar destinado a dissipar se na terra.A extensa obra de Vergílio Ferreira não cessa de nos alarmar com imprevistas fosforescências, não raro cintilantes, de sentido, um sentido que se faz da dramática consciência do excesso que nos constitui, mas que, afinal, é "tanto para nada". E um intersticial vislumbre de um futuro que nos contrariasse neste nosso clamor de nada eis que percorre, apofaticamente, toda a obra vergiliana cujos heróis, inchados de augúrio e de promessa, acabam por soçobrar, vítimas da "Sem Razão" da "Grande Ordem", sob o peso, enfim, de um destino à medida da "barriga das minhocas".Mas, no fim de tudo, que é, paradoxalmente, um final que se sente desde o início, subsiste em tudo o que por Vergílio foi dito um doce mas inquieto travo de insubmissão e de uma ínvia esperança, por entre o tumulto do incessante e estrénuo caminhar. Porque não nos aguarda a placidez serena da chegada, mas essa infinda sucessão de pontos de partida impõe se nos apenas isto: ser homens "até mais não..." E sê lo na esquálida razão de o ser.

http://www.wook.pt/

Integrado no "Colóquio Internacional Vergílio Ferreira" no cinquentenário de Manhã Submersa: filosofia e Literatura, realizado em Março último na Universidade Católica Portuguesa (Lisboa), onde foram apresentadas comunicações importantes de Robert Bréchon, Eduardo Lourenço, Luís Mourão, Helder Godinho, José Esteves Pereira, Fernanda Irene Fonseca, Rosa Maria Goulart, entre outras, foi lançado o livro de José Antunes de Sousa Vergílio Ferreira e a Filosofia da sua Obra Literária, em que pela primeira vez se estuda em profundidade o sentido filosófico da ficção do autor de Para Sempre. Doutorado em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa e professor do Instituto Piaget, José Antunes de Sousa é hoje investigador do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira na mesma Universidade e colabora com regularidade em revistas e jornais. Ao abordar a filosofia na obra literária de Vergílio Ferreira, nas vertentes mais essenciais do que a fundamenta, o autor não deixa de fazer incidir o seu estudo nos aspectos e limites de uma obra que é posta em paralelo com outros autores portugueses, ao mesmo tempo que destaca as relações da literatura e da filosofia, da ética e do materialismo metafísico, do humanismo e de Deus, do conhecimento e da linguagem que aparecem estudadas em profundidade e com grande rigor filosófico. De facto, trata--se de um primeiro e essencial estudo da obra vergiliana na perspectiva da filosofia, onde se não esquecem os conceitos de sujeito e linguagem, Deus e divindade, tempo e temporalidade, os mitos do Transcendente, ou ainda o sentido da fala e da escrita, da linguagem e o mundo que em Vergílio Ferreira, como é demasiado eviente nos seus ensaios e anotações de diário, ganham um espaço de eleição ou de preferência nas questões que sempre soube inquirir ou abordar. Por isso, este estudo do Prof. José Antunes de Sousa é realmente denso e exaustivo ao longo de quinhentas páginas e afirma-se, sem dúvida, como um excepcional contributo para o melhor conhecimento da obra literária de Vergílio Ferreira. E é isso que ressalta, na evidência dos valores defendidos pelo prof. José Antunes de Sousa neste admirável estudo ao ter sabido colocar em destaque, com grande rigor de interpretação, os conceitos e mitos que consubstanciam a obra vergiliana - sinfonia em louvor da vida e desde sempre saber, como diz em Invocação ao Meu Corpo, que "o que existe para o homem é o absoluto da sua hora e tudo o que para lá existe, existe apenas coordenado com ela, a ela subordinado".E, na atitude de tudo globalizar na ficção ou ensaísmo literário, se poder encontrar uma "explicação" para o que é do homem mais essencial, porque toda a obra se define dentro de coordenadas que, na aceitação ou recusa dos valores mais autênticos, Vergílio Ferreira exigiu que a sua coerência intelectual se afirmasse através de um itinerário tão próprio e de excepção na moderna literatura portuguesa, sem se desviar dessa posição inconfundível de quem encarou a literatura como o acto maior e único de estar vivo.

http://www.apagina.pt

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O Existencialismo segundo Vergílio Ferreira.



"Esforço inútil é conceber vastas obras. Mais vale partir do princípio de que elas existem e escrever-lhes breves comentários." Jorge Luís Borges.


O Existencialismo segundo Vergílio Ferreira    

 "O existencialismo ergue o seu protesto, afirmando que o Homem é pessoalmente, individualmente, um valor; que a sua liberdade (em todas as suas dimensões e não apenas em algumas) é uma riqueza, uma necessidade estrutural de que não deve perder-se entre a trituração do dia-a-dia; e finalmente que, fixando o homem nos seus estritos limites, só por distracção ou imbecilidade ou por crime se não vê ou não deixa ver que ao mesmo homem impende a tarefa ingente e grandiosa de se restabelecer em harmonia no mundo, para que em harmonia a sua vida lucidamente se realize desde o nascer ao morrer.       Possivelmente gostaríeis ou teríeis curiosidade de me ouvir falar de mim, já que vou sendo insensivelmente investido na qualidade de uma espécie de delegado nacional ou regional do Existencialismo. Mas eu jamais me disse "existencialista", embora muito deva à temática existencial e pelo Existencialismo tenha manifestado publicamente o maior interesse. É que aceitarmos um rótulo automaticamente obriga a aceitar-lhe todas as consequências, entre as quais a de nos responsabilizarmos por tudo quanto sob este rótulo se disser ou fizer.       Por mim, preferia definir o Existencialismo como a corrente de pensamento que, regressada ao existente humano, a ele privilegia e dele parte para todo o ulterior questionar. Ou então - e paralelamente ou implicitamente a essa definição - preferiria dizer, continuando Sartre, aliás, que o Existencialismo é uma corrente do pensamento que reabsorve no próprio "eu" de cada um toda e qualquer problemática e a revê através do seu raciocinar pessoal ou preferentemente da sua profunda vivência. Aí se implica portanto que nenhum questionar se estabelece em abstracto, de fora para dentro, mas antes se retoma a partir da nossa dimensão original, ou seja, verdadeiramente, de dentro para fora." 

F. Vergílio, Espaço Invisível II 

sábado, 4 de agosto de 2012

Não penses...





Não Penses:
Não penses. Que raio de mania essa de estares sempre a querer pensar. Pensar é trocar uma flor por um silogismo, um vivo por um morto. Pensar é não ver. Olha apenas, vê. Está um dia enorme de sol. Talvez que de noite, acabou-se, como diz o filósofo da ave de Minerva. Mas não agora. Há alegria bastante para se não pensar, que é coisa sempre triste. Olha, escuta. Nas passagens de nível, havia um aviso de «pare, escute, olhe» com vistas ao atropelo dos comboios. É o aviso que devia haver nestes dias magníficos de sol. Olha a luz. Escuta a alegria dos pássaros. Não penses, que é sacrilégio. 
Vergílio Ferreira, in "Conta-corrente - nova série - 2"

domingo, 22 de julho de 2012

Vive o Dia de Hoje!




Vive o Dia de Hoje!

Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro. 

Vergílio Ferreira, in "Escrever"

Breve Explicação do Sentido da Vida!




Breve Explicação do Sentido da Vida!

Como exprimir em duas linhas o que venho tentando explicar já não sei em quantos livros? A vida é um valor desconcertante pelo contraste entre o prodígio que é e a sua nula significação. Toda a «filosofia da vida» tem de aspirar à mútua integração destes contrários. Com uma transcendência divina, a integração era fácil. Mas mais difícil do que o absurdo em que nos movemos seria justamente essa transcendência. Há várias formas de resolver tal absurdo, sendo a mais fácil precisamente a mais estúpida, que é a de ignorá-lo. Mas se é a vida que ao fim e ao cabo resolve todos os problemas insolúveis - às vezes ou normalmente, pelo seu abandono - nós podemos dar uma ajuda. Ora uma ajuda eficaz é enfrentá-lo e debatê-lo até o gastar... Porque tudo se gasta: a música mais bela ou a dor mais profunda. Que pode ficar-nos para já de um desgaste que promovemos e ainda não operamos? Não vejo que possa ser outra coisa além da aceitação, não em plenitude - que a não há ainda - mas em resignação. Filosofia da velhice, dir-se-á. Com a diferença, porém, de que a velhice quer repouso e nós ainda nos movemos bastante. 

Vergílio Ferreira, in "Um Escritor Apresenta-se"

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A verdade é amor...



A verdade é amor — escrevi um dia. Porque toda a relação com o mundo se funda na sensibilidade, como se aprendeu na infância e não mais se pôde esquecer. É esse equilíbrio interno que diz ao pintor que tal azul ou vermelho estão certos na composição de um quadro. É o mesmo equilíbrio indizível que ao filósofo impõe a verdade para a sua filosofia. Porque a filosofia é um excesso da arte. Ela acrescenta em razões ou explicações o que lhe impôs esse equilíbrio, resolvido noutros num poema, num quadro ou noutra forma de se ser artista. Assim o que exprime o nosso equilíbrio interior, gerado no impensável ou impensado de nós, é um sentimento estético, um modo de sermos em sensibilidade, antes de o sermos em. razão ou mesmo em inteligência. Porque só se entende o que se entende connosco, ou seja, como no amor, quando se está «feito um para o outro». Só entra em harmonia connosco o que o nosso equilíbrio consente. E só o consente, se o amar.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Cartas a Sandra.





"(...) O amor é tão monótono, querida. Porque ele é o cimo sensível de uma imensidade de coisas que se esqueceram. Como falar desse mínimo que é o vértice de todo um mundo que o sustenta? Falar de nada, que é o todo nele? Sandra. Podia dizer o teu nome infinitamente na multiplicação do que nele me ressoa. E é assim o que mais me apetece, dizê-lo dizê-lo. E ouvir nele o maravilhoso que me abala todo o ser. Poderia escrever o teu nome ao longo do que escrevo e teria talvez dito tudo. Mas eu quero desse tudo dizer também o que aí se oculta. Dizer o meu enlevo e a razão de ele me existir. As tuas mãos nas minhas. O incrível miraculoso de eu dizer o teu rosto. O ardor de um meu dedo na tua pele. Na tua boca. O terrível dos meus dedos nos teus cabelos. O prazer horrível até à morte da minha entrada no teu corpo."

Um pequeno romance composto essencialmente por dez cartas de amor, "Cartas a Sandra" representa um epílogo ao romance "Para Sempre", do mesmo autor. O ideal do amor, já sobejamento dissecado em "Para Sempre", é neste romance ainda mais sublimado em cartas escritas por Paulo à sua amada após a sua morte. A catarse de um amor inesgotável, descrito das mais variadas formas, um amor tão forte que todas as palavras não o conseguem circunscrever e onde a dimensão metafísica desempenha um papel apaziguador no desespero obsessivo de Paulo na evocação da memória de Sandra. Num estilo sóbrio embora angustiado, sem recorrer a frases ou expressões corriqueiras próprias de adolescentes nas suas mensagens de amor, Vergílio Ferreira explora a fundo a capacidade de amar do ser humano levada ao extremo, traduzida num viver perto da loucura, num desespero sereno de evocações comoventes enfatizadas numa dignidade de pensamentos filosóficos que transcendem em todo o seu esplendor metafísico a figura do amor elevado ao purismo do sentimento e à degradação da sua carne, numa fuga rumo à eternidade que é o expoente de todo o amor. 

http://www.citador.pt


Paulo passa os últimos dias da sua velhice escrevendo cartas a Sandra, esposa há muito falecida, recordando a sua vida em comum bem como a sua relação com Xana, a filha que muito cedo abandonou a casa da família. Trata-se do testemunho pungente, mesmo desesperado de um homem apaixonado a quem faltou vida para desafiar a morte da mulher amada. Para Paulo o tempo estacionara na morte de Sandra. No entanto, o amor perdurou para lá da sua morte, como um espinho cravado no seu coração. À procura de paz na memória de Sandra, Paulo encontra mais e mais sofrimento. Essa memória é sempre incompleta porque é por Sandra, por toda ela que Paulo clama. Pelo seu espírito, pelo seu amor mas também pelo seu corpo e pela sua vida. Assim, o tom melancólico, por vezes quase tenebroso, destas cartas constitui a imagem acabada da solidão; uma imensa solidão. Cartas a Sandra constitui, por outro lado, um documento importantíssimo para compreender a personalidade do autor, na sequência do romance auto-biográfico Para Sempre. Assinadas por Paulo, elas são o retrato de uma vida sofrida pela perda dos pais na infância, os anos promissores da universidade, na idade de todas as esperanças, mas também, mais tarde, o abandono por parte da filha, Xana, e a morte trágica de Sandra. Restou uma imensa solidão que marcou os seus últimos dias. Depois de tudo (da morte até) restou o amor; mas um amor sofrido e excessivo: “havia em ti divindade bastante para estar certo o que me doesse”…

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Na tua Face.





"Estávamos cheios de imensas coisas em suspenso e havia um leve murmúrio do rio só de vê-lo correr. Devia haver um grande silêncio no Mundo porque nos ouviamos ser"


" Todo o homem só ama a mulher que não existe. E bom é isso. Porque se ela existisse, o amor deixava de existir. Mesmo que ele a ame como supõe. Porque todo o amor só existe nos intervalos de a pessoa amada existir. Fora desses intervalos não existe."

"Então olhei-a em deslumbramento e terror no intocável do seu ser. Queria ver-lhe os olhos verdadeiros e a boca e a face, mas não estavam lá. Porque eram só uma aparição difusa incontornável como a luz do ar que não se via e era só iluminação. (…) Via-lhe a face mas só no impossível como lha vejo agora."

"E imprevistamente era aí que eu repousava, na tua face, na imagem final do meu desassossego."

 Daniel conhece Bárbara que exerce nele um extraordinário fascínio, mas casa com Ângela que não ama (ou que ama de outra forma) e continua, pela sua vida fora, convivendo através da memória com o amor impossível que sente por Bárbara, em lembranças que vêm por si, sem que ele as chame.  Tudo nesse amor evocado por Daniel é duplo: Ângela e Bárbara são duas faces da mesma moeda que o acompanharão sempre. Ângela será a presença constante na conjugalidade partilhada da casa, dos filhos, das férias, mas também das leituras, das conversas, dos momentos de dor e silêncio… Bárbara será o objecto da evocação obsessiva; manter-se-á presente na memória de um breve instante, no eco de um chamamento, como manifestação de plenitude, de perfeição, de eternidade, a face que se vê, mas só no impossível. Ângela é o corpo, Bárbara a aparição.

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domingo, 15 de julho de 2012

"Eu só acreditaria num Deus que soubesse dançar." Friedrich Nietzsche.



“Espera, deixa-me ver-te devagar. Dás uns passos, bates uma palmada no chão e sobes alto e lá no ar dás uma volta sobre ti, mas antes de caíres de pé, imóvel, fico a ver-te parada no ar. Corpo elástico, esguio, fico a ver-te. Flutuas imponderável, a Terra não tem razão sobre ti. Vejo-te no espaço, todo o corpo elástico numa curva dos pés até ao extremo das mãos, ou talvez não, recomeça o salto para ver melhor. Talvez o corpo não em prancha ao alto mas enrolado sobre si e giras no ar em rodízio até te desenrolares e caíres depois em pé firme. Queria dizer-te como isso me maravilhou, o teu corpo poderoso, desprendido das coisas, liberto da sua condição bruta, feito de um esplendor imaterial. Terei dito bem? Imaterial. Quanta coisa havia nele, os teus ossos, as tuas vísceras, mas tudo existia leve e eu só lhe via a sua forma perfeita de voo. Há uma órbita da exactidão como se diz dos astros e tu seguia-la, um rigor matemático com que o universo existe. (…)Bati palmas, elas ressoaram pelo espaço do Olimpo. Não fui bem eu que as bati mas o duplo de mim, não te sei explicar. As palmas foram à frente e eu já não as pude apanhar. Porque o homem, minha querida, tem sempre em si um outro de si e só num tarado é que os dois coincidem. Também não sabia bem porque o fiz, agora sei. Claro, havia a destreza, a perfeição da tua realização, mas agora sei que havia outra coisa. Queria dizer-te simplesmente que havia o teu corpo, mas não chega. Havia outra coisa – que coisa? Mónica, minha querida. Havia, deixa-me pensar. Ah, poder falar do teu corpo. Perder o pé da realidade. Fechar à volta uma cortina para que nada de ti me fugisse e ficar eu só diante de ti. Sinto agora alguém dentro de mim a perguntar e depois? que é que aconteceu? Sei lá o que aconteceu, quero lá saber. Quero é estar contigo no nada do tudo o que acontecer. Saturar-me da tua presença. E ver-te. E ver-te. Que importa o que "acontece"?”



Ferreira, Vergílio, Em Nome da Terra, 10.ª edição, Lisboa: Quetzal Editores, 2009, p. 28 – 29

Em nome da Terra.





"Tenho nas mãos a memória do teu corpo, do boleado doce do teu corpo. As pernas, os seios, deixa-me encher as mãos outra vez. O fio ardente da tua pele. A face. Mal te vejo os olhos, mas o teu olhar cai sobre mim em torrente. Despi-me brusco, deitados os dois na areia, e a fúria, e o limite. E uma só verdade para nós e o universo. Deitados de costas, lemos as estrelas. A paz enorme de horizonte a horizonte. A eternidade. E a necessidade de estarmos lá, para não haver mais nada para fora de nós. Depois erguemo-nos, mergulhámos nas águas."

"Quero é aproveitar o tempo, eu que estou em mim para estar todo no que te digo. Uma vontade absoluta de te amar, que o  absoluto é a medida humana, é assim. Atravessei o horror e a humilhação. Atravessei a miséria e o que nela apodreceu do meu corpo terrestre. Lembro-te, penso-me. Está uma noite quente, deve ser o fim do verão. Lembro-te agora intensamente e a tua perfeição está no fim do meu lembrar. Esta-se lá bem, no lembrar."

"Mas de repente começa-me a chover na memória. Não me perguntes porquê ."


João, personagem principal, viúvo, decide viver os últimos anos de vida num Lar, doando todos os seus bens à sua filha Márcia. Para si, guardou apenas, a memória, um Cristo mutilado, um desenho de Dürer, uma reprodução de um fresco de Pompeia e um disco de Mozart - concerto para oboé. Estes símbolos percorrerão a narrativa, estabelecendo uma relação analógica com o corpo, a morte, o esplendor e a beleza. Temporalmente situado no tempo "último" do narrador, este romance constitui-se como um bonito mas doloroso louvor ao amor e ao seu objeto - a sua mulher Mónica, já falecida. Através de um diálogo sem resposta, profundamente intimista, João dirige-se a um "Tu" fisicamente ausente, Mónica, de cujas lembranças se vai alimentando. 





http://www.infopedia.pt/em-nome-da-terra



   



Até ao fim...




O protagonista, Cláudio, relata-nos a trágica história da sua vida de casal com Flora e o seu jovem filho Miguel, que mais tarde se revela viciado em droga e morre num tiroteio em uma operação policial. Entendendo o ser como parte integrante de uma ordem universal, aceitando a condição humana limitada mas ao mesmo tempo desejando o infinito ou a imortalidade.

"Eu disse que o sentir era hipócrita? Não é verdade. É o que está mais próximo do ser. (...) Mas só as palavras o esclarecem, só nelas o sentir é verdade assumida. Gosto de me assumir em tudo o que sou."

"Sentia-me violentamente ofendido, mas não o mostrava. Porque sentirmo-nos ofendidos é afirmarmos a eficácia de quem nos ofende. Só o podemos mostrar quando a nossa dignidade está em causa. Mas só o está quando a importância do outro é inegável"

"A dor dói sempre o mesmo, a diferença está em nós"

http://oquemefazcorrer.blogspot.com.br

O monólogo de um pai durante o velório do filho. Um homem passa a noite numa capela sobre o mar a velar o corpo do filho, um jovem adulto, deliquente e toxicodependente. Durante essas horas, vai contando na primeira pessoa a história da sua vida e dirige-se ao filho morto.

Até Ao Fim é um romance de sofrimento pautado pelo constante negativismo. Na sua essência, a história é simples - um jornalista vê o filho perder-se no mundo das drogas ao mesmo tempo que tenta encontrar sentido em sua vida romântica passada. Cláudio, personagem principal, é um homem envelhecido por uma vida desgastante e faz a sua intensa reflexão na noite em que o filho Miguel  morre. Sem força para guiar  sua vida até agora, é no fatídico amanhecer que algum sentido é capturado por Cláudio, sendo que "a vida toda dentro dele" é um pensamento conclusivo das rédeas do seu destino. 

http://www.goodreads.com/book/show/9357950-at-ao-fim

Nesta obra, o autor parece entender o ser como parte integrante de uma ordem universal, e a condição humana é abordada sob dois aspectos metafísicos essenciais: a limitação( morte ) e desejo de infinito( imortalidade ).

http://pt.shvoong.com/books/romance

sábado, 14 de julho de 2012

Para Sempre...




Nasce-se todo inteiro, mas morre-se apenas a parcela do todo que nos foi morrendo ao longo da vida e nos tinha em pé. Por isso a morte mais natural de um velho é cair para o lado.

Não te entristeças por não poderes já ver o que verão os que vierem depois de ti. Porque depois de mortos, terão visto exactamente o mesmo que tu.

Vir a morte e levar-nos. E não fazermos falta a ninguém. Nem a nós. Que outra vida mais perfeita?.

Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim.

Quais são as tuas palavras essenciais? As que restam depois de toda a tua agitação e projectos e realizações. As que esperam que tudo em si se cale para elas se ouvirem. As que talvez ignores por nunca as teres pensado. As que podem sobreviver quando o grande silêncio se avizinha.

Não poderás vencer a morte. Mas impõe-lhe a vida como um bandarilheiro e verás que muitas vezes ela marra no vazio.

Os grandes sistemas do pensar, da ciência, as grandes correntes literárias e artísticas, os grandes ideários políticos ou religiosos. Tudo passou. Restos detritos fragmentos. Toma o teu bocado e senta-te no vão de uma porta a comê-lo.

Vergílio Ferreira

Paulo é um homem só. Na fase final da sua vida recorda Sandra, a mulher que amou. Sandra morrera de cancro. Recorda Xana, a filha que foi morrendo no abismo da droga. A mãe que morrera na sua infância; as tias o padre que o atormentaram com uma religião beata que nunca respondeu aos seus pedidos de misericórdia. Memórias que flutuam no rio estéril da memória…A melancolia de um tempo que chega ao fim, um tempo que pareceu eterno nas promessas de que é feita a vida, mas que desemboca inexoravelmente na solidão, no pessimismo, na visão negra da vida. Neste livro, Paulo aguarda a morte numa imensa introspecção onde os tempos múltiplos da vida são revistos com mágoa, com o sofrimento que só a linguagem poética de Vergílio Ferreira consegue exprimir. A morte com que se inicia o livro é a mesma, negra e impiedosa com que ele termina; a morte que está em todos os cantos da vida… a morte, esse fantasma permanente…Para Sempre é um livro de mágoas; um livro pessimista, negro, macabro; um livro sobre a vida, sobre a necessidade de a pensar mesmo que no fim dos tempos, no momento em que nada mais o pensamento poderá mudar. Mas é também um livro sobre a morte como redenção; como o remédio único e fatal para o sofrimento; para a culpa e a podridão; para a vida. A morte como o fim desse sofrimento prolongado a que Paulo chama vida. É um livro difícil de ler; não que a linguagem nos atrapalhe; não que o enredo seja emaranhado ou confuso. Não… é difícil de ler porque dói. Faz doer. O sofrimento que sai da caneta de Vergílio atravessa as páginas e vem de encontro ao leitor, apanhando-o desprevenido. E vai directamente à alma de quem lê, sem piedade. Nas letras, palavras e frases vê-se a dor; sentem-se as lágrimas; encaixa-se os socos da revolta.  Vemos Paulo e verificamos que podíamos ser nós. Vemos Paulo e não temos pena; sofremos com ele; temos pena de nós. Não lamentamos a vida de Paulo; lamentamos a vida.

http://aminhaestante.blogspot.com.br/2011/02/para-sempre-vergilio-ferreira.html

No final de uma vida, entrando no seu epílogo, um homem já sem destino para cumprir medita sobre o seu passado e o seu futuro, no regresso a uma casa vazia onde passou parte da sua infância, povoada de fantasmas que evocam os momentos chave da sua existência. Recheado de flash-backs para o passado e para o futuro, a antevisão, real e com todos os detalhes, da degradação da sua velhice e do seu funeral. Inicia-se, em Paulo, a derradeira tentativa de procura da explicação de um sentido para a vida. Nesta narrativa de evocações aleatórias, centrada no romance de Paulo com Sandra, mulher difícil e de poucos sentimentalismos, último alicerce num mundo de ilusões. Vítima do seu próprio pensamento,  questionando a sua condição humana e a dos outros, comparando-a até ao fim dos tempos, um lamento arrastado mas pontuado por algumas fagulhas de lucidez e outras de felicidade passada e presente, onde persistem ainda mais perguntas que respostas. A paz nunca chega, para sempre continua a percepção do abismo entre aquilo que se é e aquilo que se sente.

http://www.citador.pt

ferreira, Vergílio- Para Sempre. Lisboa: Bertrand [1987].

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Signo Sinal.




Apague as pegadas:


Cuide, quando pensar em morrer
 Para que não haja sepultura revelando onde jaz,
Com uma clara inscrição a lhe denunciar
 E o ano da sua morte a lhe entregar,
 Mais uma vez: Apague as pegadas!

 Bertold Brecht

"E, com efeito, as obras recomeçaram. Outra vez os operários regressavam dos subsídios de desemprego e dos retroactivos salariais, o comércio reanimou, havia putas novas vindas de fora. E imediatamente pás, picaretas e escavadoras, os cilindros de terraplenagem, uma grande rede de trincheiras foi-se abrindo para os alicerces. Um homem desconhecido, vestido de bruto, botas ferradas, um fato grosso, eu via-o com papéis na mão, ia de grupo em grupo dar instruções. Punha-me a olhar o emaranhado das valas, a imaginar a aldeia recostruída e as distâncias e o jogo possível das relações humanas. Imaginava as ruas, as casas reerguidas, o reencontro dos homens consigo, com os seus sonhos e esperanças e enredos e conflitos, o envelhicimento das coisas pelos séculos e a nova ordenação da vida sob a eternidade dos céus."
 Signo Sinal.


Em pleno tempo de pós-revolução (25 de Abril), uma aldeia é quase inteiramente devastada por um terramoto. Um dos seus muitos sobreviventes, herdeiro de uma pequena fábrica erguida pelo seu falecido pai, sem qualquer vocação para nada de prático na vida, sempre dado às letras e à reflexão, constata o absurdo da condição humana e da inútil tentativa entusiástica da mudança do estado das coisas. Uma aldeia em ruínas e um planejamento que não se concretiza nunca, o narrador segue contando pequenas histórias de uma época de vida coletiva e experiência compartilhada, que faz contraste com o mundo moderno, a perda da memória e a vida esvaziada de sentido. O que se percebe em Signo Sinal é uma crítica à modernidade que promete o progresso e entrega devastação. O que restou da antiga aldeia foi somente uma  terra rasa de ruínas. Em torno do narrador de  Signo Sinal, um dos sobreviventes, apenas as ruínas das casas e dos habitantes. É neste cenário que Luís começa a por sua memória em movimento. São os mortos da sua lembrança que retornam, são vestígios de um passado recente. A aldeia, os moradores e a memória estão soterrados pelo terremoto chamado progresso.



FERREIRA, Vergílio. Signo Sinal. Lisboa, Bertrand, 1990.
http://revistaliter.dominiotemporario.com
http://www.citador.pt/




domingo, 8 de julho de 2012

Rápida, a sombra.



Na casa do alto do monte, dormi bem. [...]. Vou a pé até lá abaixo, [...]. Fica em baixo, a aldeia, eu moro em cima, num monte. Construí aí uma casa, ainda meus pais eram vivos. [...]. Comprei um terreno no alto, façamos aqui a nossa morada. Gosto disto, sou  irremediavelmente daqui – sobretudo agora que não tenho mais donde ser. (Rápida, a sombra). 

Regresso, pois, a casa, regresso à aldeia. Oh, sim, vão sendo horas. Abrando a marcha à entrada da ponte, viro à esquerda. [...]. Rolo devagar pelo empedrado da rua que sobe ligeiramente. E a olhos lentos vou 
descobrindo o meu reino. Como se expulso, velho senhor, condenado ao exílio, o meu reino. Retornar ao princípio? Fechar o círculo,[...]. Regressa aos teus mortos. Vão sendo horas. [...].  Aqui estou. Para 
sempre. (Rápida, a sombra).

Chego à aldeia, meto a chave à porta da rua, há ainda claridade pelo ar. Compacta de silêncio, raiada de horizontes ao balancear dos espaços, a casa. Meto a chave, rodo o fecho a duas voltas, puxo o trinco. [...]. Que dorme ainda incerto, batido da frialdade do meu sepulcro.  Aqui estou. Pela porta aberta entra comigo um halo de claridade, esboça as coisas na sombra. E é como se aberta a porta do meu jazigo, eu estendido ao meio da sala e à minha volta as coisas mortas comigo. Entro medroso, abro as janelas, debruço-me a uma delas para o sem fim. O sol vagueia ainda pela cabeça dos montes, a aldeia apaga-se de sombra lá ao fundo, o silêncio alastra pela quietude da terra até à neblina da distância. Fecho a vidraça, sento-me num sofá – é pois certo que venho para morrer. (Rápida, a sombra).


A partida, a viagem e o regresso estão entre os temas recorrentes dos romances de Vergílio Ferreira. A partida e a viagem relacionam-se, via de regra, com a necessidade que tem o protagonista de romper com a situação estática e aprisionantemente estreita do seu meio para ir em busca da Prosperidade, da Liberdade e do Saber. Estão por vezes associadas, ou são conseqüência, de grandes perdas  que determinam mudanças de rumo na vida dos protagonistas ao peso de um autoritarismo contra o qual um “herói” em formação e ainda extremamente jovem (e também extremamente necessitado), não tem ainda forças suficientes para se opor. No caso, a descoberta e o uso dessas forças, a seu tempo, farão parte do lado trágico da formação do narrador. A partida é sobretudo comum aos protagonistas jovens, e assim faria parte de um processo de conhecimento do mundo e de si mesmos. O regresso ao local de onde inicialmente haviam partido, é intermitente e temporário, entre os protagonistas jovens e saudáveis, e definitivo entre os velhos e os que, o não sendo, se encontram precocemente próximos do fim. Este regresso para sempre destina-se a fechar um 
ciclo, o da vida, ao fim do qual é necessário retornar ao ponto de partida.

GODINHO, Helder.  O universo imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.

Em  Rápida, a sombra o tema do regresso é retomado com a mesma evidência e o mesmo fulgor (ou ainda maiores) já conhecidos de  Cântico final. O regresso de Júlio Neves à sua aldeia (dado apenas em termos imaginários) desdobra-se, prolonga-se e repete-se. A partir dos devaneios de Júlio, que, para fugir ao cansaço e esgotamento de tudo e à mediocridade das reuniões citadinas com literatos menores e falsos artistas, refugia-se, em pensamento e desejo, na pureza solitária da sua aldeia de origem.Voltar  para a aldeia é um desejo que em Júlio se vai instalando discretamente,comedidamente – “Regressar à aldeia, à origem , estou tão cansado." O livro desenrola-se em dois (talvez três) planos de ficção, em espaços distintos: a praia, o escritório e, a aldeia (a casa dos pais e a sua no monte). Iniciam-se separados mas vão-se interligando, entretecendo uma trama em que se fundem inteiramente e se tornam difíceis de distinguir as oscilações entre a imaginação e a recordação. Talvez a única coisa que nos ajude a distinguir o real do sonho seja a presença da figura da mulher; a sua, Helena, ou a sonhada, Hélia. Ou então também pode ser que tudo não passe de um plano só em que só o sujeito se narre a si mesmo e tudo o resto seja apenas o intrincado dos seus sonhos, das suas realidades lembradas, das suas realidades sonhadas e, fundamentalmente, dos seus medos.

Ferreira, Vergílio- Rápida a Sombra. Lisboa: Bertrand, 1979.

"Desassossegadamente à sombra de Pessoa" Carla Freitas Martins



 Seria possível que surgisse ingenuamente o nome de Alberto Soares em Aparição?



É um estudo da autora Carla Freitas Martins que pretende debruçar-se, sobre a questão da influência de Fernando Pessoa na obra de Virgílio Ferreira. É  muito interessante compreender qual foi a influência do poeta nos autores, seus contemporâneos. Há a presença quase esmagadora de Pessoa sobretudo na geração seguinte, que floresce para a escrita nos anos 50. Muitos desses autores vão rebelar-se contra Pessoa, escrevendo "contra" ele, mas afinal apenas com o objetivo mais amplo de eles próprios poderem encontrar o seu espaço. Foi o que fez, nomeadamente, Virgílio Ferreira. Primeiro instintivamente combatendo a influência Pessoana só para mais tarde a aceitar plenamente na sua própria obra. A autora debruça-se sobre  a ligação entre os dois autores, que muitas vezes parece estabelecer-se apenas na continuidade do que seria a "dor de pensar", uma atitude eminentemente existencialista e eminentemente Pessoana. É certo que Pessoa desbrava de certa forma esse caminho, mas é menos claro porque é que os autores dos anos 50-60 não são já, claramente, influenciados pelas correntes francesas e necessariamente pela obra de Pessoa enquanto precursor "a derrubar" ou a "continuar". A questão é certamente interessante e a hipótese de Pessoa enquanto autor nascente de um existencialismo que precede o existencialismo Francês.

http://blog.umfernandopessoa.com

O desassossego de Vergílio Ferreira em torno do fingimento poético pessoano e do culto exacerbado da crítica relativamente à geração de Orpheu é a procura consciente de desobstrução de um espaço no sistema literário, do qual resulta inevitavelmente a inclusão do romancista na bibliografia crítica do seu predecessor. A possibilidade que se coloca com este ensaio é a de que, ainda que inicialmente formulando uma discordância, o processo de leitura crítica da obra de Pessoa tenha permitido uma leitura dissemelhante e, progressivamente, mais alargada da obra do seu predecessor e tenha proporcionado um longo processo de maturação dos mecanismos de escrita vergiliana.

http://www.wook.pt

Interrogar o que é humano...



"Dostoievski escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe , fica o homem, por conseguinte , abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos actos e que por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão. O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há-de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa portanto que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: «O homem é o futuro do homem.» É perfeitamente exacto. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa."

Vergílio Ferreira, in 'O Existencialismo é um Humanismo' 

Citando Vergílio Ferreira, escutar uma pessoa que dedicou parte de sua vida a interrogar o que é humano...


" «perseguido até ao fim, acho o mar». Este verso resume o meu objectivo. Achar o mar como um símbolo, como uma metáfora dessa alegria, que é a alegria da pacificação, da eterni­dade, da plenitude, da juventude plena. "

"Eu quis sempre que os títulos dos meus livros tivessem alguma coisa de si próprios, um certo valor estético. Não me interessam os títulos puramente designativos, como o rótulo de um frasco. Quero que o titulo seja em si mesmo um sinal e um valor estético e poético. Que fosse uma abertura, um começo de um poema."

"Cresci eu todo. Em mim cresceu tudo. Penso, de qualquer modo, que aquilo que mais cresceu em mim foi o carácter de adulto."

" Em certa medida, e eu não gosto nada da expressão (literato português), vejo-me um pouco como um marginal. Sou um marginal e não me sinto mal por isso."

" Há coisas a mais no mundo para podermos fixar-nos apenas num universo tão pequeno como é o universo do livro. Aquilo que eu pretendi, e que penso ter conseguido, em certa medida, era transmitir uma dada ideia do mundo e das inquietações que o mundo suscitava através do romance."

" Os romances que escrevi foram, de alguma maneira, espelhos de outra coisa que passava por eles. A vida, por exemplo."

"A vida tem a sua significação máxima nela própria e em nada do que a excede. Portanto, a vida é um valor maior. É um absoluto. Foi esta a minha principal obsessão, aquela de que fui colhendo outras obsessões secundárias. Como sabe, as obsessões secundárias são mais importantes, às vezes, que as obsessões chamadas principais..."

" À medida que eu vou chegando ao fim (tenho uma carga de anos...), vou guardando silêncio. Creio que a natureza se encarrega de me ir organizando a maneira de ser e de sentir para me harmonizar com a proximidade da morte. Da morte real."

" Nós vemos bem aquilo que não vemos, sobretudo — e o passado é aquilo que nós ve­mos menos. Aquilo que está mais perto dos olhos são os próprios olhos e nós nunca os vemos."

"Os meus livros são, fundamentalmente, formas de viver o passado sem o magoar, sem o ferir. Detesto ferir."

"Há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos."

“Entender. Porquê a obsessão de ter de haver uma resposta, apenas porque houve uma pergunta? 
Todo o entender é no impossível que tem o seu limite. Mas o impossível é a medida do homem e da sua 
vocação. Aí sou. Aí estou.” 

“As coisas são o que está aí sem mais significação. Mas o aparecimento do homem trouxe com 
ele a fatalidade do como e porquê. Assim ele inventou o mistério e levou o resto da vida a tentar explicá-
lo. E é essa obsessão de explicar que transmite aos que vierem depois dele. É uma  obsessão absurda.” 

"Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o 'saber' 
e o 'ver'. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde 
está a 'aparição'. (...) O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se 
lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio." 

"o melhor da vida é o seu impossível (...). Mas o impossível foi o que sempre mais me fascinou." (169-70).

"A arte é silêncio, nós é que podemos 'discursar' sobre esse silêncio." 

"Deus foi feito à sua [do homem] semelhança e por isso lhe conferiu o dom da criação." Por isso, mesmo numa situação pós-apocalíptica, a arte sobreviveria"

" As respostas vêm da sacristia, do confessionário, do partido. O problema não é esse. É que essas questões não são perguntas, são interrogações e as interrogações não têm resposta. Ou tem-na numa religião."

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Apenas Homens.


" Tinha olhos bons, o velho. Um pouco amachucados da velhice, mas bons. E Pedro gostava dele. Ninguém tinha dado conta do roubo a não ser ele, porque as pessoas, como tinham de trabalhar, quando era a altura de as estrelas acordarem, era também a altura de elas estarem a dor­mir. E mesmo que não estivessem ainda a dormir, não tinham tempo de reparar nas estrelas, porque tinham de reparar noutras coisas. Mas o velho não podia já trabalhar e também não tinha sono. De maneira que, para ir passando a noite, que levava mais tempo a passar do que o dia, gostava às vezes de se pôr a olhar as estrelas. E foi assim que deu conta do roubo. É claro que ninguém gosta de que lhe limpem o que é seu. Mas, a bem dizer, a vida era tanta, que estrela a mais ou estrela a menos pouca diferença fazia." Estrela, em Apenas Homens. Vergílio Ferreira.


«Apenas Homens» é uma colectânia de contos de Vergílio Ferreira que integra contos significativos das várias fases da escrita de ficção da carreira literária deste consagrado autor. Com maior preponderância de contos da fase de escrita neo-realista, encontram-se os contos:

«O Encontro»
O Engenheiro da cidade que tem que viver uma temporada no campo, em trabalho, e é vítima da população de uma aldeia pelo facto de ser da cidade.

«Saturno»
O condenado à morte que se auto-transformou em mártir para servir de exemplo ao próprio filho, como prova de que afinal o seu filho segue as mesmas convicções, ainda que para isso tenha que odiar para sempre o pai.

«Apenas Homens»
Um cauteleiro sem partes dos braços e partes de pernas, gozado e enxovalhado por toda a população de uma aldeia, mesmo quando é possuidor de algum dinheiro por bondade de um cliente a quem lhe saiu o prémio.

«Praia»
A rapariga que niguém quer, devido aos problemas de saúde que tem, mas que todos os anos, na praia, sonha por um ano seguinte onde há-de encontrar um homem que a ame.

«O Sexto Filho»
Numa família pobre, do campo, nasce o sexto filho. O pai, como forma de tentar ter mais alguns dividendos, deixa que ele fique coxo para o resto da sua vida - ele destaca-se, sim, mas esse seu destaque será também fatal para o pai.

«Linha Quebrada»
Numa nação qualquer, resolve-se acabar com a cultura do vinho, passando-se a uma cultura da água. Geram-se paradoxos sobre paradoxos, sociais e políticos, e em grande paradoxo acaba a história. Sintomático de qualquer tipo de proibição imposta numa sociedade.

«A Galinha»
Mais uma história exemplar sobre a sociedade, que simboliza o quão fútil pode ser um motivo desde que dê azo ao desabafo de todo o ódio, rancor e mesquinhez que se criam em todos os meios pequenos, mais uma vez numa pequena aldeia. História macabra, onde depois de muitos mortos e feridos, o móbil mórbido de tudo ainda assim subsiste.

«Fado Corrido»
Orfão de pai e mãe ao Deus dará, de tombo em tombo encontra o seu destino natural, numa rixa de taberna.

Além destes contos, temos o que podemos chamar contos fantásticos, ou até, contos da fase pré-existencialista da escrita de Vergílio Ferreira:

«O Fantasma»
Sozinho num café, um homem inventa mentalmente mil e uma conjecturas acerca de outro homem que está sentado noutra mesa a alguns metros dele e que ele julga que o está a observar e a julgar.

«A Estrela»
O melhor e mais carismático de todos os contos deste livro, é uma história particularmente comovente e simbólica de um rapazinho que escolheu uma estrela do céu como sendo sua e a foi buscar. Quando a população da aldeia deu por isso, foi um alvoroço danado, dando por falta de algo de que nunca sentiu falta, e que rapidamente esqueceu quando a estrela foi reposta no sítio. Mas a que preço... cada um tem a sua estrela, e se esta não existe, porque não criá-la?

«O Imaginário»
Outro conto no género fantástico sobre um rapazinho aprendiz de escultor das peças mais pirosas e popularuchas que se faziam em Portugal, cujo mestre tinha um com ele um pacto muito estranho, mesmo depois de morto...

«A Visita»
O filho pródigo vem de visita curta aos pais, ao fim de bastante tempo, mas há alguém que anda atrás dele, e que bate à porta várias vezes enquanto ele está a tomar a refeição com os pais. Instala-se o pânico e ele refugia-se por cima de um armário...

Ainda, a começar e a terminar este livro de contos, encontram-se dois contos em que o estilo de escrita introspectiva e existencialista presente na maioria dos seus romances é bem visível:

«Adeus»
Numa relação entre duas pessoas, por mais que tudo indique que até poderia dar certo, no fundo de cada um há o sentimento de que algo está errado.

«Carta»
Alguém volta à casa onde foi imensamente feliz na infância, já depois do falecimento dos pais, e aí redescobre a paz espiritual que os seus pais tinham e que lhe passaram como testemunho surdo da principal razão de toda a existência humana.


Site de Referência:
http://www.citador.pt

sábado, 9 de junho de 2012

Nítido Nulo.






"Queimai os livros todos, porque a verdade ainda não foi escrita e dos novos ignorantes é o reino dos céus. Se vos disserem que há uma Lei - não! Perguntai-lhes quem é que fez a Lei e desobedecei, que dos desobedientes é a glória eterna". (Nítido Nulo)

A interrogação que Vergílio faz da vida e da morte, do sentir, da luta, da família, de Deus, do destino, do corpo. Muitas das suas questões rodeiam a importância do corpo, direta ou indiretamente. Porque o corpo é a grande (senão a única) ligação do «Eu» à existência. Mas não há respostas. Só grandes interrogações. Nítido Nulo é uma obra com grande vigor.Um homem, encarcerado, aguarda a execução da sentença de morte a que foi condenado. Da sua cela avista, através das grades brancas de uma janela ínfima, uma praia e o mar até ao fundo do horizonte. Do amanhecer ao anoitecer, através da vida que corre nos elementos da natureza da praia deserta, Jorge vai desfolhando momentos de uma vida pautada por uma não aceitação de todas as regras morais, sociais e políticas do meio em que viveu. Constante crítico de todas as restrições impostas pela sociedade, ainda novo se apercebe que a sua voz não será ouvida e que será condenado a um final infeliz, premonitório pelos exemplos reais e brutais a que assistiu na sua infância. O relato dos vários episódios da sua vida intercalam-se, num monólogo em que contrastam as observações das coisas simples da natureza (a praia, o mar) e da vida (o pequeno Lúcio), e os diálogos e reflexões complexas e densas frutos do crescente descontentamento com o regime político que, personificadas no inteligente Teófilo, o levam a uma derrota abissal no confronto entre uma verdade que, embora podre, existe e fundamenta-se, e uma outra que se caracteriza pelo renegar de qualquer limite à existência. Este é o grande calcanhar de aquiles de Jorge que, confrontando-se várias vezes com o próprio Vergílio Ferreira, o acusa de ser demasiado humano face a um mundo que, por se caracterizar dessa mesma forma, se deixa levar por meia dúzia de homens e ideias pobres, e não procura a sua verdadeira libertação numa extrapolação do ser que derrube todos os limites impostos. Presa do seu próprio pensamento, perdido na extrema nitidez da sua visão da vida que torna tudo nulo, Jorge aceita seu destino limpando tudo o que ainda o possa ligar a uma vida cujos momentos mais altos foram os mais simples, e, por isso, os mais verdadeiros. Pronto para morrer, após um julgamento onde defende que a verdade do homem é muito maior que a sua imagem, enfrenta em paz um pelotão de fuzilamento que previamente abate o cão da praia que, além de Lúcio, falecido ainda em plena inocência, era a outra referência usada por Jorge para sustentar a existência de seres da natureza vítimas dos preconceitos e maldade dos homens. Uma leitura difícil caracterizada pelos constantes saltos sem aviso entre o monólogo reflexivo, o presente vivido e ficcionado, e o relato constantemente interrompido de episódios reais do seu passado, este romance apresenta ainda como momentos altos a descrição fiel da sociedade portuguesa durante o regime Salazarista (sem nunca o referir diretamente), onde, sem se comprometer demasiado na crítica à mesma, Vergílio Ferreira usa, inteligentemente, o próprio narrador que faz críticas ao escritor, por o considerar demasiado brando e sentimental; por outro lado, a excelente construção do personagem Teófilo, defensor do regime mas inteligente argumentador de uma verdade que lucidamente defende contra todas as evidências de uma verdade maior mas que não se sustenta. Nítido Nulo é quase um esforço desumano, um livro tirado a ferros do íntimo do escritor. A vontade era de deixar de escrever ficção, e desde Alegria Breve (1965) que não publicava um romance. Aliás, por volta da altura em que o termina, Vergílio Ferreira dizia que escreveria mais um e pronto. Porque Nítido Nulo é violento. Há violência emocional e física expressa em palavras e ações. Depois de uma ação revolucionária, Jorge  diz: "Desço a ver a extensão da minha força. Do crânio do polícia saltam várias molas que bamboleiam lentas no ar. Palpo-o todo nas articulações destruídas. Olho as mãos, tenho-as todas cheias de óleo". Vergílio Ferreira anota no seu diário dia 29 de Novembro de 1969, dias depois de terminar o livro: "A propósito: acabei o romance no dia 27. Nem registei o facto. Por distracção. Porque foi um acontecimento. Nunca suei tanto. Deve ter nódoas o texto. Ainda não verifiquei. Mas deve ter. As nódoas do suor". Há uma frase em Nítido Nulo que poderia dar o tom ideal para a leitura deste livro: "Dizer não é abrir um espaço para o homem se pôr de pé. Dizer não". 


Site de referência:
http://www.citador.pt

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Virá sol?



"O silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me nos ossos. É o silêncio do mundo, da minha condição. [...] Foi fácil liquidar os deuses e semideuses de todos os meus sonhos, de toda a minha inquietação. Mas ao fim de todas as mortes, nos limites do silêncio, há um fantasma sem nome, oblíqua presença de nada. Se eu pudesse dar-te um nome a ti, quê? quem? só assim te mataria talvez. Um nome,  rede invisível, irreal prisão de sons breves. Mas não há um nome para ti. Absurda invenção do homem, espectro instantâneo.Subitamente um indício, um aviso. [...] Vem a voz desde a caverna e do mito, desde o olhar grosso e animal. Em sucessivos nomes se calou, por que falar ainda? [...] A terra é estéril e virgem, é a hora do recomeço perfeito. E todavia às vezes hesito: quem te garante? Entregarás, ao teu filho, o silêncio total. Mas quem te garante que ele não vai errar outra vez? Quem te garante que a voz se calará com a tua voz? Como saber que a voz  não se erguerá da própria terra?" (Alegria Breve)


O romance Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, publicado em 1965, apresenta um narrador que expõe suas percepções presentes e suas sensações referentes à memória do tempo em que a aldeia, lugar onde vive, ainda era povoada. A história é muito singela: uma aldeia é explorada por suas minas de volfrâmio; esgotado o minério, o lugar é abandonado. Mas um único habitante resiste, Jaime Faria, que vai recordar, num futuro, fatos e sensações passadas referentes à sua experiência de vida naquele lugar. A simplicidade do enredo é contrastada com a complexidade da personagem, o que se caracteriza como uma tendência recorrente nos romance modernos. O autor moderno ocupa-se com a vida intricada da personagem, e, para apresentar essa complicada experiência interior, o romancista deixa em segundo plano o enredo, justamente porque quer dar ênfase à personagem. Mas a complexidade, nessa obra, não é apenas da personagem; as preocupações ensaísticas do autor, como também as estruturas ficcionais apresentam-se complexas. Vergílio Ferreira emprega, nessa narrativa, recursos próprios da linguagem poética, especificamente os do texto lírico, ou seja, há a preocupação artística na elaboração do nível sonoro da frase, bem como a presença de mitos e símbolos. A estrutura é composta de fragmentos, como num mosaico em que tudo é presentificado na memória do narrador. Embora não nomeada, a aldeia, tal como é mencionada em Alegria breve, refere-se, em um primeiro momento, a um lugar particularizado: uma região de Portugal em que minas de volfrâmio são exploradas. Este é o lugar exterior que dispõe o inominado espaço interior do narrador Jaime Faria. A aldeia é o espaço físico que sugere ao narrador, Jaime, dimensões espaciais interiores que dificilmente podem ser nomeadas. Uma aldeia vazia é o espaço onde se encontra o narrador. Nesse espaço vazio, de proporções ampliadas (pois a aldeia se insere em uma vasta região abandonada), ele percebe sua imensidão íntima proporcionada pela dimensão do exterior, a aldeia. Não há convivência social no presente momento em que ele se recorda de situações passadas e estabelece perspectivas futuras. Por isso, estando só em um lugar privilegiado, uma aldeia com dois montes imponentes, o sol, a neve e o vento, ele pode pensar na condição de seu ser, ou na inquietação de seu ser, de sua existência. Os recursos poéticos empregados em Alegria breve buscam constituir uma linguagem que supra as deficiências dos conceitos, que não atingem a comunhão do homem com o verbo. Ao mesmo tempo que o verbo é inerente ao homem, também é impreciso, uma vez que a linguagem não consegue expressar toda a complexidade da experiência humana. Assim, deixando o pensamento divagar pela corrente rítmica, o autor cria imagens para exprimir o que, na lógica convencional, é inexprimível. Vergílio Ferreira, deixando fluir o idioma, confere à frase imagens e sentidos que são estabelecidos pelo próprio ritmo do pensamento. A prosa se poetiza numa cadência de maré que vai e vem, que cai e se levanta no fluxo do pensamento: "Um oco de silêncio escava-se vastamente no vazio do universo. É um silêncio opaco como o de uma cripta saturada de uma compressão de ecos — virá sol? Uma nódoa luminosa repassa como gordura, lá ao alto, a pasta grossa das nuvens. A luz íntima da neve começa a vir à superfície, imperceptivelmente cintila. Neve instantânea, neve intacta, só eu a uso. Filamentos de seda delimitam o desenho das coisas. Fímbria, timbre, limite — que inverossímeis palavras? que finas titilações? tinidos da memória, ouço-os. A neve estende aos meus olhos a esterilidade de tudo, o início limpo. Gravo nela a minhaanimalidade quente e escura" (Alegria Breve). Jaime precisa dizer a si mesmo suas reflexões acerca dos sentidos da vida. É dessa maneira que vai buscando novos significados para sua existência. Esse sentido novo é percebido quando proferido pela linguagem poética, que, somente ela, pode expressar a complexidade da condição humana. Em Alegria breve, um dos muitos símbolos, que fazem expandir a constelação imagética, são:  o silêncio, o sol e a luz. Segundo o dicionário de símbolos o silêncio é um prelúdio de abertura à revelação; [...] abre uma passagem. Segundo as tradições, houve um silêncio antes da criação, haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos; dá às coisas grandeza e majestade; marca o progresso. O silêncio, dizem as regras monásticas, é uma grande cerimônia. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2000, p.833-834). Transpondo a definição para o romance, o silêncio é a revelação de uma percepção nova, de quem está sozinho e compreende a grandeza do ser humano. É a força do pensamento para a realização do novo, por meio de uma simbiose com o espaço, ou seja, com a terra, com o sol, com a luz, com a alvura da neve... O silêncio prepara o homem para a percepção de toda a grandeza da vida. Uma vez inserido num espaço onde não haja silêncio, não é possível ao sujeito tal percepção, pois os ruídos urbanos, por exemplo, ocultam os pequenos detalhes inerentes ao silêncio que revela a “imensidão interior” do narrador. Desse modo, essa preparação do silêncio proporcionado pelo espaço exterior é uma cerimônia de iniciação do indivíduo para a compreensão de seu espaço interior. Outro símbolo relacionado ao romance é o sol, que na iconografia cristã, é considerado o símbolo da imortalidade e da ressurreição, ou seja, do eterno renascimento para a vida. A pergunta feita por Jaime é: "virá sol?”, repetida em vários outros trechos, sugere que ele acredita, ou pelo menos precisa acreditar, na necessidade da recriação da própria vida a partir de uma linguagem que, ao renomear tudo, crie um mundo novo. Assim como um cristo ateu, ele é o seu próprio salvador, o designado por si mesmo, ele está só, não há alguém que possa fazê-lo para reordenar o mundo. Ao longo da obra, a luz do sol, com sua presença reiterada, simboliza a renovação da vida. A luz é conhecimento. Segundo São João (1, 9), a luz primordial identifica-se com o verbo; o que exprime de certo modo a irradiação do sol espiritual que é o verdadeiro coração do mundo. Em um determinado momento Jaime exclama: "“A luz íntima da neve [...], só eu a uso”. Entendemos que a luz nos sugere, juntamente com o silêncio, “o primeiro aspecto do mundo informe”, do mundo que poderá recriar-se a partir da luz que é revelação, intuição do ser a respeito da amplitude da sua própria existência. O silêncio, associado à luz do sol e à luz branca da neve, que revela ao nosso narrador toda a possibilidade de recriação da vida por meio da palavra. Esse narrador, deus de si mesmo, pode, com esses elementos, fazer ressurgir o sentido do mundo e com ele o da vida

Referências Bibliográficas:

BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad.: Antonio de Padua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
BIEDERMANN, H. Dicionário ilustrado de símbolos. Trad.: Glória Paschoal de
Camargo. São Paulo: Melhoramentos, 1993.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad.: Vera da Costa
e Silva et al. 15.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
FERREIRA, V. Alegria breve [1965]. São Paulo: Editora Verbo, 1972.

ALEGRIA BREVE:








"Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser e a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçada a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais. Conheci o meu corpo em que apareci. É curioso um corpo. tem mãos, pés, nove buracos. Meteram-me nele, nunca mais o pude despir, como um cão à cor do pêlo que lhe calhou. É um corpo grande, um metro e oitenta e tal. É o meu corpo. Calhou-me. Movo as mãos, os pés, e é como se fossem meus e não fossem. É extraordinário, fantástico, um corpo. Com ele e nele tomei posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria uma pena não ter nascido? Ficava sem saber. Dirás tu: de que te serve se amanhã já não sabes? É certo. Mas agora sei. De que servem os prazeres que já tive e nunca mais poderei ter? Não servem de nada, serviram." (Alegria Breve)


ALEGRIA BREVE:

"Alegria Breve" é a vida, e também a morte, o envelhecimento, a solidão, as experiências passadas, o que podia ter sido mas não chegou a ser, o corpo e a alma, o mundo que nunca foi nosso, apenas emprestado e retirado a qualquer instante. Em 1965, quando saiu a primeira edição de Alegria Breve, alguns críticos vaticinaram que se tratava de um romance de solidão que fechava todo um ciclo ficcional iniciado com Mudança (1949) e que dificilmente Vergílio Ferreira reencontraria outros caminhos de ficção para prosseguir na sua aventura literária. E isso, claro, não aconteceu. Pelo contrário, pôde ainda publicar alguns dos melhores romances da moderna prosa portuguesa: Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Na Tua Face (1994) ou ainda Cartas a Sandra (1996), como despedida final aos oitenta anos e por desejar entrar no paraíso com esse belíssimo romance debaixo do braço. A ação narrativa de Alegria Breve passa-se em dois planos: o real e o irreal. Na releitura há quarenta e sete anos de distância, dizemos de novo que é uma história inteiramente imaginada, não situada num tempo e espaço definidos, e o problema central é exatamente o que ao homem diz ter ele de assumir, em plena consciência, a visão perfeita do mundo em que vive, com o que nele existe de bom e de mau, de alegria e de desgraça, de ambição e de derrota, de vida e de morte. Mas a vida tem  a sua natural continuidade e o homem prolonga-se na existência de um filho e este noutro filho que há de ser seu e assim na eternidade do tempo. O filho do homem  é a imagem real da vida, da sabedoria e da experiência que herdamos de outros homens. Tudo se desenrola no melhor dos mundos possíveis, pelo menos na aparência. O que distingue ou atraiçoa esta verdade tão simples é que cada homem traz consigo a certeza de um  dia ter de morrer, estar cansado, não ter já razões para nada... E esta  visão que para alguns conduz ao desespero e à angústia de viver é, afinal, a lucidez de uma consciência atenta e capaz de tudo, tentando reconstruir tudo desde as origens, desde a primeira palavra. Mas existe um aspecto bem importante neste romance, talvez tão relevante como o que nele se discute: é o que se relaciona claramente com a posição de Vergílio Ferreira que, neste romance, reflete o seu cansaço, um cansaço de homem e de artista, para quem este nosso tempo não é de crise nem de liquidação. O reflexo desse cansaço manifesta-se ao longo do livro, quase sempre na confissão de: "estás velho!, estás cansado!". Palavras de choque que avisam de que se trata sobretudo de um romance da fadiga de um escritor e de um homem que morre em solidão porque a vida já não satisfaz as suas exigências. Através desse cansaço da vida (ou saturação num gênero literário em plena crise ), o escritor cansa-se também da arte. Por isso, Alegria Breve é escrito em supetões, frases inacabadas, imagens secas  que se repetem e a sombra que aparece é ainda a de um mundo coado de neve que reflete ser o símbolo deste romance: a brancura (pureza) de uma alma que se perde e se conquista ao longo de Alegria Breve e foi depois retomada no romance Nítido Nulo (1971). Romance plenamente realizado, mesmo apesar de querer sugerir o que há de instável e de ambíguo no mundo moderno, acentuando ainda, como em Estrela Polar, o desencontro das personagens com a realidade e entre si próprias, este romance de Vergílio Ferreira fecha um ciclo que se podia afirmar ter atingido o ponto-limite da sua criação literária. Alegria Breve refletiu, sim, na altura o cansaço de um romancista que se cansou de pôr em romance o que parecia ser impossível: a verdade do próprio mundo original, o absurdo da morte, a procura de um absoluto, ter uma explicação para tudo, ou a ideia de que Deus morreu.

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