domingo, 8 de julho de 2012

Rápida, a sombra.



Na casa do alto do monte, dormi bem. [...]. Vou a pé até lá abaixo, [...]. Fica em baixo, a aldeia, eu moro em cima, num monte. Construí aí uma casa, ainda meus pais eram vivos. [...]. Comprei um terreno no alto, façamos aqui a nossa morada. Gosto disto, sou  irremediavelmente daqui – sobretudo agora que não tenho mais donde ser. (Rápida, a sombra). 

Regresso, pois, a casa, regresso à aldeia. Oh, sim, vão sendo horas. Abrando a marcha à entrada da ponte, viro à esquerda. [...]. Rolo devagar pelo empedrado da rua que sobe ligeiramente. E a olhos lentos vou 
descobrindo o meu reino. Como se expulso, velho senhor, condenado ao exílio, o meu reino. Retornar ao princípio? Fechar o círculo,[...]. Regressa aos teus mortos. Vão sendo horas. [...].  Aqui estou. Para 
sempre. (Rápida, a sombra).

Chego à aldeia, meto a chave à porta da rua, há ainda claridade pelo ar. Compacta de silêncio, raiada de horizontes ao balancear dos espaços, a casa. Meto a chave, rodo o fecho a duas voltas, puxo o trinco. [...]. Que dorme ainda incerto, batido da frialdade do meu sepulcro.  Aqui estou. Pela porta aberta entra comigo um halo de claridade, esboça as coisas na sombra. E é como se aberta a porta do meu jazigo, eu estendido ao meio da sala e à minha volta as coisas mortas comigo. Entro medroso, abro as janelas, debruço-me a uma delas para o sem fim. O sol vagueia ainda pela cabeça dos montes, a aldeia apaga-se de sombra lá ao fundo, o silêncio alastra pela quietude da terra até à neblina da distância. Fecho a vidraça, sento-me num sofá – é pois certo que venho para morrer. (Rápida, a sombra).


A partida, a viagem e o regresso estão entre os temas recorrentes dos romances de Vergílio Ferreira. A partida e a viagem relacionam-se, via de regra, com a necessidade que tem o protagonista de romper com a situação estática e aprisionantemente estreita do seu meio para ir em busca da Prosperidade, da Liberdade e do Saber. Estão por vezes associadas, ou são conseqüência, de grandes perdas  que determinam mudanças de rumo na vida dos protagonistas ao peso de um autoritarismo contra o qual um “herói” em formação e ainda extremamente jovem (e também extremamente necessitado), não tem ainda forças suficientes para se opor. No caso, a descoberta e o uso dessas forças, a seu tempo, farão parte do lado trágico da formação do narrador. A partida é sobretudo comum aos protagonistas jovens, e assim faria parte de um processo de conhecimento do mundo e de si mesmos. O regresso ao local de onde inicialmente haviam partido, é intermitente e temporário, entre os protagonistas jovens e saudáveis, e definitivo entre os velhos e os que, o não sendo, se encontram precocemente próximos do fim. Este regresso para sempre destina-se a fechar um 
ciclo, o da vida, ao fim do qual é necessário retornar ao ponto de partida.

GODINHO, Helder.  O universo imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.

Em  Rápida, a sombra o tema do regresso é retomado com a mesma evidência e o mesmo fulgor (ou ainda maiores) já conhecidos de  Cântico final. O regresso de Júlio Neves à sua aldeia (dado apenas em termos imaginários) desdobra-se, prolonga-se e repete-se. A partir dos devaneios de Júlio, que, para fugir ao cansaço e esgotamento de tudo e à mediocridade das reuniões citadinas com literatos menores e falsos artistas, refugia-se, em pensamento e desejo, na pureza solitária da sua aldeia de origem.Voltar  para a aldeia é um desejo que em Júlio se vai instalando discretamente,comedidamente – “Regressar à aldeia, à origem , estou tão cansado." O livro desenrola-se em dois (talvez três) planos de ficção, em espaços distintos: a praia, o escritório e, a aldeia (a casa dos pais e a sua no monte). Iniciam-se separados mas vão-se interligando, entretecendo uma trama em que se fundem inteiramente e se tornam difíceis de distinguir as oscilações entre a imaginação e a recordação. Talvez a única coisa que nos ajude a distinguir o real do sonho seja a presença da figura da mulher; a sua, Helena, ou a sonhada, Hélia. Ou então também pode ser que tudo não passe de um plano só em que só o sujeito se narre a si mesmo e tudo o resto seja apenas o intrincado dos seus sonhos, das suas realidades lembradas, das suas realidades sonhadas e, fundamentalmente, dos seus medos.

Ferreira, Vergílio- Rápida a Sombra. Lisboa: Bertrand, 1979.

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