sexta-feira, 8 de junho de 2012

ALEGRIA BREVE:








"Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser e a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçada a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais. Conheci o meu corpo em que apareci. É curioso um corpo. tem mãos, pés, nove buracos. Meteram-me nele, nunca mais o pude despir, como um cão à cor do pêlo que lhe calhou. É um corpo grande, um metro e oitenta e tal. É o meu corpo. Calhou-me. Movo as mãos, os pés, e é como se fossem meus e não fossem. É extraordinário, fantástico, um corpo. Com ele e nele tomei posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria uma pena não ter nascido? Ficava sem saber. Dirás tu: de que te serve se amanhã já não sabes? É certo. Mas agora sei. De que servem os prazeres que já tive e nunca mais poderei ter? Não servem de nada, serviram." (Alegria Breve)


ALEGRIA BREVE:

"Alegria Breve" é a vida, e também a morte, o envelhecimento, a solidão, as experiências passadas, o que podia ter sido mas não chegou a ser, o corpo e a alma, o mundo que nunca foi nosso, apenas emprestado e retirado a qualquer instante. Em 1965, quando saiu a primeira edição de Alegria Breve, alguns críticos vaticinaram que se tratava de um romance de solidão que fechava todo um ciclo ficcional iniciado com Mudança (1949) e que dificilmente Vergílio Ferreira reencontraria outros caminhos de ficção para prosseguir na sua aventura literária. E isso, claro, não aconteceu. Pelo contrário, pôde ainda publicar alguns dos melhores romances da moderna prosa portuguesa: Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Na Tua Face (1994) ou ainda Cartas a Sandra (1996), como despedida final aos oitenta anos e por desejar entrar no paraíso com esse belíssimo romance debaixo do braço. A ação narrativa de Alegria Breve passa-se em dois planos: o real e o irreal. Na releitura há quarenta e sete anos de distância, dizemos de novo que é uma história inteiramente imaginada, não situada num tempo e espaço definidos, e o problema central é exatamente o que ao homem diz ter ele de assumir, em plena consciência, a visão perfeita do mundo em que vive, com o que nele existe de bom e de mau, de alegria e de desgraça, de ambição e de derrota, de vida e de morte. Mas a vida tem  a sua natural continuidade e o homem prolonga-se na existência de um filho e este noutro filho que há de ser seu e assim na eternidade do tempo. O filho do homem  é a imagem real da vida, da sabedoria e da experiência que herdamos de outros homens. Tudo se desenrola no melhor dos mundos possíveis, pelo menos na aparência. O que distingue ou atraiçoa esta verdade tão simples é que cada homem traz consigo a certeza de um  dia ter de morrer, estar cansado, não ter já razões para nada... E esta  visão que para alguns conduz ao desespero e à angústia de viver é, afinal, a lucidez de uma consciência atenta e capaz de tudo, tentando reconstruir tudo desde as origens, desde a primeira palavra. Mas existe um aspecto bem importante neste romance, talvez tão relevante como o que nele se discute: é o que se relaciona claramente com a posição de Vergílio Ferreira que, neste romance, reflete o seu cansaço, um cansaço de homem e de artista, para quem este nosso tempo não é de crise nem de liquidação. O reflexo desse cansaço manifesta-se ao longo do livro, quase sempre na confissão de: "estás velho!, estás cansado!". Palavras de choque que avisam de que se trata sobretudo de um romance da fadiga de um escritor e de um homem que morre em solidão porque a vida já não satisfaz as suas exigências. Através desse cansaço da vida (ou saturação num gênero literário em plena crise ), o escritor cansa-se também da arte. Por isso, Alegria Breve é escrito em supetões, frases inacabadas, imagens secas  que se repetem e a sombra que aparece é ainda a de um mundo coado de neve que reflete ser o símbolo deste romance: a brancura (pureza) de uma alma que se perde e se conquista ao longo de Alegria Breve e foi depois retomada no romance Nítido Nulo (1971). Romance plenamente realizado, mesmo apesar de querer sugerir o que há de instável e de ambíguo no mundo moderno, acentuando ainda, como em Estrela Polar, o desencontro das personagens com a realidade e entre si próprias, este romance de Vergílio Ferreira fecha um ciclo que se podia afirmar ter atingido o ponto-limite da sua criação literária. Alegria Breve refletiu, sim, na altura o cansaço de um romancista que se cansou de pôr em romance o que parecia ser impossível: a verdade do próprio mundo original, o absurdo da morte, a procura de um absoluto, ter uma explicação para tudo, ou a ideia de que Deus morreu.

SITE DE REFERÊNCIA:
 http://www.apagina.pt


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