sábado, 9 de junho de 2012

Nítido Nulo.






"Queimai os livros todos, porque a verdade ainda não foi escrita e dos novos ignorantes é o reino dos céus. Se vos disserem que há uma Lei - não! Perguntai-lhes quem é que fez a Lei e desobedecei, que dos desobedientes é a glória eterna". (Nítido Nulo)

A interrogação que Vergílio faz da vida e da morte, do sentir, da luta, da família, de Deus, do destino, do corpo. Muitas das suas questões rodeiam a importância do corpo, direta ou indiretamente. Porque o corpo é a grande (senão a única) ligação do «Eu» à existência. Mas não há respostas. Só grandes interrogações. Nítido Nulo é uma obra com grande vigor.Um homem, encarcerado, aguarda a execução da sentença de morte a que foi condenado. Da sua cela avista, através das grades brancas de uma janela ínfima, uma praia e o mar até ao fundo do horizonte. Do amanhecer ao anoitecer, através da vida que corre nos elementos da natureza da praia deserta, Jorge vai desfolhando momentos de uma vida pautada por uma não aceitação de todas as regras morais, sociais e políticas do meio em que viveu. Constante crítico de todas as restrições impostas pela sociedade, ainda novo se apercebe que a sua voz não será ouvida e que será condenado a um final infeliz, premonitório pelos exemplos reais e brutais a que assistiu na sua infância. O relato dos vários episódios da sua vida intercalam-se, num monólogo em que contrastam as observações das coisas simples da natureza (a praia, o mar) e da vida (o pequeno Lúcio), e os diálogos e reflexões complexas e densas frutos do crescente descontentamento com o regime político que, personificadas no inteligente Teófilo, o levam a uma derrota abissal no confronto entre uma verdade que, embora podre, existe e fundamenta-se, e uma outra que se caracteriza pelo renegar de qualquer limite à existência. Este é o grande calcanhar de aquiles de Jorge que, confrontando-se várias vezes com o próprio Vergílio Ferreira, o acusa de ser demasiado humano face a um mundo que, por se caracterizar dessa mesma forma, se deixa levar por meia dúzia de homens e ideias pobres, e não procura a sua verdadeira libertação numa extrapolação do ser que derrube todos os limites impostos. Presa do seu próprio pensamento, perdido na extrema nitidez da sua visão da vida que torna tudo nulo, Jorge aceita seu destino limpando tudo o que ainda o possa ligar a uma vida cujos momentos mais altos foram os mais simples, e, por isso, os mais verdadeiros. Pronto para morrer, após um julgamento onde defende que a verdade do homem é muito maior que a sua imagem, enfrenta em paz um pelotão de fuzilamento que previamente abate o cão da praia que, além de Lúcio, falecido ainda em plena inocência, era a outra referência usada por Jorge para sustentar a existência de seres da natureza vítimas dos preconceitos e maldade dos homens. Uma leitura difícil caracterizada pelos constantes saltos sem aviso entre o monólogo reflexivo, o presente vivido e ficcionado, e o relato constantemente interrompido de episódios reais do seu passado, este romance apresenta ainda como momentos altos a descrição fiel da sociedade portuguesa durante o regime Salazarista (sem nunca o referir diretamente), onde, sem se comprometer demasiado na crítica à mesma, Vergílio Ferreira usa, inteligentemente, o próprio narrador que faz críticas ao escritor, por o considerar demasiado brando e sentimental; por outro lado, a excelente construção do personagem Teófilo, defensor do regime mas inteligente argumentador de uma verdade que lucidamente defende contra todas as evidências de uma verdade maior mas que não se sustenta. Nítido Nulo é quase um esforço desumano, um livro tirado a ferros do íntimo do escritor. A vontade era de deixar de escrever ficção, e desde Alegria Breve (1965) que não publicava um romance. Aliás, por volta da altura em que o termina, Vergílio Ferreira dizia que escreveria mais um e pronto. Porque Nítido Nulo é violento. Há violência emocional e física expressa em palavras e ações. Depois de uma ação revolucionária, Jorge  diz: "Desço a ver a extensão da minha força. Do crânio do polícia saltam várias molas que bamboleiam lentas no ar. Palpo-o todo nas articulações destruídas. Olho as mãos, tenho-as todas cheias de óleo". Vergílio Ferreira anota no seu diário dia 29 de Novembro de 1969, dias depois de terminar o livro: "A propósito: acabei o romance no dia 27. Nem registei o facto. Por distracção. Porque foi um acontecimento. Nunca suei tanto. Deve ter nódoas o texto. Ainda não verifiquei. Mas deve ter. As nódoas do suor". Há uma frase em Nítido Nulo que poderia dar o tom ideal para a leitura deste livro: "Dizer não é abrir um espaço para o homem se pôr de pé. Dizer não". 


Site de referência:
http://www.citador.pt

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