"Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação." Vergílio Ferreira.
quinta-feira, 28 de junho de 2012
Apenas Homens.
" Tinha olhos bons, o velho. Um pouco amachucados da velhice, mas bons. E Pedro gostava dele. Ninguém tinha dado conta do roubo a não ser ele, porque as pessoas, como tinham de trabalhar, quando era a altura de as estrelas acordarem, era também a altura de elas estarem a dormir. E mesmo que não estivessem ainda a dormir, não tinham tempo de reparar nas estrelas, porque tinham de reparar noutras coisas. Mas o velho não podia já trabalhar e também não tinha sono. De maneira que, para ir passando a noite, que levava mais tempo a passar do que o dia, gostava às vezes de se pôr a olhar as estrelas. E foi assim que deu conta do roubo. É claro que ninguém gosta de que lhe limpem o que é seu. Mas, a bem dizer, a vida era tanta, que estrela a mais ou estrela a menos pouca diferença fazia." Estrela, em Apenas Homens. Vergílio Ferreira.
«Apenas Homens» é uma colectânia de contos de Vergílio Ferreira que integra contos significativos das várias fases da escrita de ficção da carreira literária deste consagrado autor. Com maior preponderância de contos da fase de escrita neo-realista, encontram-se os contos:
«O Encontro»
O Engenheiro da cidade que tem que viver uma temporada no campo, em trabalho, e é vítima da população de uma aldeia pelo facto de ser da cidade.
«Saturno»
O condenado à morte que se auto-transformou em mártir para servir de exemplo ao próprio filho, como prova de que afinal o seu filho segue as mesmas convicções, ainda que para isso tenha que odiar para sempre o pai.
«Apenas Homens»
Um cauteleiro sem partes dos braços e partes de pernas, gozado e enxovalhado por toda a população de uma aldeia, mesmo quando é possuidor de algum dinheiro por bondade de um cliente a quem lhe saiu o prémio.
«Praia»
A rapariga que niguém quer, devido aos problemas de saúde que tem, mas que todos os anos, na praia, sonha por um ano seguinte onde há-de encontrar um homem que a ame.
«O Sexto Filho»
Numa família pobre, do campo, nasce o sexto filho. O pai, como forma de tentar ter mais alguns dividendos, deixa que ele fique coxo para o resto da sua vida - ele destaca-se, sim, mas esse seu destaque será também fatal para o pai.
«Linha Quebrada»
Numa nação qualquer, resolve-se acabar com a cultura do vinho, passando-se a uma cultura da água. Geram-se paradoxos sobre paradoxos, sociais e políticos, e em grande paradoxo acaba a história. Sintomático de qualquer tipo de proibição imposta numa sociedade.
«A Galinha»
Mais uma história exemplar sobre a sociedade, que simboliza o quão fútil pode ser um motivo desde que dê azo ao desabafo de todo o ódio, rancor e mesquinhez que se criam em todos os meios pequenos, mais uma vez numa pequena aldeia. História macabra, onde depois de muitos mortos e feridos, o móbil mórbido de tudo ainda assim subsiste.
«Fado Corrido»
Orfão de pai e mãe ao Deus dará, de tombo em tombo encontra o seu destino natural, numa rixa de taberna.
Além destes contos, temos o que podemos chamar contos fantásticos, ou até, contos da fase pré-existencialista da escrita de Vergílio Ferreira:
«O Fantasma»
Sozinho num café, um homem inventa mentalmente mil e uma conjecturas acerca de outro homem que está sentado noutra mesa a alguns metros dele e que ele julga que o está a observar e a julgar.
«A Estrela»
O melhor e mais carismático de todos os contos deste livro, é uma história particularmente comovente e simbólica de um rapazinho que escolheu uma estrela do céu como sendo sua e a foi buscar. Quando a população da aldeia deu por isso, foi um alvoroço danado, dando por falta de algo de que nunca sentiu falta, e que rapidamente esqueceu quando a estrela foi reposta no sítio. Mas a que preço... cada um tem a sua estrela, e se esta não existe, porque não criá-la?
«O Imaginário»
Outro conto no género fantástico sobre um rapazinho aprendiz de escultor das peças mais pirosas e popularuchas que se faziam em Portugal, cujo mestre tinha um com ele um pacto muito estranho, mesmo depois de morto...
«A Visita»
O filho pródigo vem de visita curta aos pais, ao fim de bastante tempo, mas há alguém que anda atrás dele, e que bate à porta várias vezes enquanto ele está a tomar a refeição com os pais. Instala-se o pânico e ele refugia-se por cima de um armário...
Ainda, a começar e a terminar este livro de contos, encontram-se dois contos em que o estilo de escrita introspectiva e existencialista presente na maioria dos seus romances é bem visível:
«Adeus»
Numa relação entre duas pessoas, por mais que tudo indique que até poderia dar certo, no fundo de cada um há o sentimento de que algo está errado.
«Carta»
Alguém volta à casa onde foi imensamente feliz na infância, já depois do falecimento dos pais, e aí redescobre a paz espiritual que os seus pais tinham e que lhe passaram como testemunho surdo da principal razão de toda a existência humana.
Site de Referência:
http://www.citador.pt
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