"Foi terrível saber que não era Deus, saber que o meu sangue e a minha carne e o meu riso tinham sido feitos por outrem. (...)... O Luciano e o Romão friamente assassinos, provaram-me por a+b que quem cria e recria o artista são os outros. Foi terrível saber que os meus versos, as minhas ideias, os meus gestos tinha, o outro por pai e que eu, que podia ser um outro para os outros não o podia ser para mim".
(Apelo da noite)
APELO DA NOITE: Viagem sem regresso entre o pensar e o agir.
A problematização de natureza política, que se verifica em Mudança, tem continuidade e aprofundamento em Apelo da noite, romance que Vergílio Ferreira termina de escrever em 1954 mas que só publica em 1963, registrando-se, entre um e outro, o aparecimento de Manhã submersa (1954), Aparição (1959), Cântico final (1960) e Estrela polar (1962). Os motivos desse tão longo hiato entre a conclusão do romance e a sua publicação foram de foro íntimo do escritor. Não obstante, alguns críticos arriscaram opiniões, caso, por exemplo, de Aniceta de Mendonça, para quem Apelo da noite é um romance menor cuja publicação só se justificou pelo “interesse editorial”. Diz ela que “Apelo da noite é um livro deslocado na obra de Vergílio Ferreira, livro que se beneficiaria do êxito de Aparição e Estrela polar” e cuja publicação teria sido movida por visíveis ‘intuitos comerciais’. Ocorre, porém, que Apelo da noite é exatamente o romance que realiza a passagem de Mudança para Cântico final, sendo necessário considerar, também, nessa passagem, o romance de formação que é Manhã submersa, que sugere um evidente parentesco com Vagão “J”, quando, em essência, já nada mais tem a ver com esse romance do passado do escritor. Apelo da noite seria, portanto, um elo relevante na transição de um modo de romance em que se mesclam o social e o existencial e um passo a mais na definição deste caminho que caracterizaria o sentido de conjunto da obra do escritor. E é por isso que não pode, este livro, ser considerado dispensável na obra de Vergílio Ferreira. Não é difícil perceber na figura de Adriano – protagonista do romance – a fusão do meditativo, solitário e angustiado Carlos Bruno com o lúcido e pragmático ativista político Pedro, seu meio-irmão, ambos personagens de Mudança. O “vício” de ler e de pensar em que Carlos mergulha a partir da “crise” e decerto em conseqüência do desgaste de todas as suas crenças, valores e relações humanas, é em Adriano uma condição visceral. A clandestinidade em que Pedro se lança na sua adesão à luta contra um governo totalitário e que só transversalmente é percebida na cena do seu aparecimento na aldeia, quase ao final do romance, é destacada em Adriano mais que em qualquer outra figura do grupo de intelectuais ativistas clandestinos do qual ele participa, em Lisboa. Adriano é um intelectual que pensa a política, a vida, a morte, a arte. Que oscila – até à tomada de decisão – entre a Idéia e a Ação, o pensamento e a prática, a inércia e o heroísmo. Apelo da noite propõe o regresso a alguns temas anteriores, a incursão por alguns novos, a proposição de problemas ainda não enfrentados. Mais do que em Mudança – e a partir do confronto Idéia/Ação –, é o conflito entre o absoluto e o relativo que, filosoficamente, ocupa o relevante lugar do tema em Apelo da noite. “Ler absoluto no relativo” – diz o próprio Vergílio Ferreira, “fórmula útil para as verdades indiferentes; para as outras é apenas uma fórmula de prudência vã. Porque, se previne de que a verdade de hoje seja o erro de amanhã, esquece que enquanto se ‘lê’ absoluto, o absoluto se não ‘lê’: 'é'. Absoluto/relativo, idéia/ação, história/transcendência, arte/política, arte/ação, vida/morte, razão/loucura, ação/destino, justiça/injustiça... São alguns dos conflitos postos em questão pelo romance, chamados constantemente ao debate pelo grupo de personagens-artistas (romancistas, poetas, pintores), professores, jornalistas, editores, ativistas culturais. O grupo, de que fazem parte Adriano Mendonça, Gabriel, Fernando Aires, Décio Ramos, Vitor, Teles, Torres, Rute, constitui, ficcionalmente, uma espécie de célula de resistência ao governo salazarista. . De início é de natureza ideológico-cultural, com redação e publicação de artigos, programas, plataformas, intervenções em jornais, realização de conferências – portanto no plano do pensamento ou da idéia. Adriano acabará por se envolver na fuga de dois presos políticos de um presídio, que, sob o seu comando, são transportados para um esconderijo numa aldeia serrana da Beira Alta. O episódio da fuga e o seu desenlace, fatal para Adriano, constitui a ação (política) como contraponto da idéia. A representação da intelectualidade no grupo de personagens propicia o aspecto ensaístico do romance. Porventura demasiado sobrecarregado de matéria ensaística ou ideológico-filosófica, o romance,enquanto ficção, ressente-se desse excesso. Há teorização em demasia sobre política, sobre arte, sobre filosofia, sobre história – o que de alguma forma prejudica a fluência do romance como tal –, e também sobre a vida e sobre a morte e sobre o intensamente questionado problema do suicídio. O direcionamento existencial é mais que evidente, uma vez que estes são temas básicos da literatura existencialista (onde constituíram tradição), de uma arte literária, sobretudo romanesca, que se destinou à representação ficcional de algumas idéias ou questões fundamentais do existencialismo. A busca do absoluto (que nenhum dos personagens pode encontrar na transcendência) ou de um valor que o valha, seja a arte, seja a ação, a aventura, o heroísmo ou um gesto decisivo numa vida, são igualmente traços de grande significado existencial. Podem ser o objetivo de uma vida ou a justificativa de uma existência. Para Adriano Mendonça, possuem essa dupla significação. Adriano julgara perdidas as razões para a vida quando atingido pela violência da morte. Primeiro a irmã, Lídia, repentinamente morta em plena juventude: “visitava-o a morte agora pela primeira vez, o seu absurdo, a sua violência como um estampido”, depois o pai, carregando a morte anunciada por um câncer: – [...]. É certo que se trata de um nódulo pequeno. Em todo o caso, provisoriamente, admitamos que é um cancro. “Um cancro” – pensou Adriano terrivelmente. Mas quando fitou o pai, encontrou nele dois olhos calmos e quase compadecidos. Tudo se reduzia a um pequeno nódulo – insistia ainda o médico. – Nenhuma razão pois para alarmes. Metástase evidente não havia. Em todo o caso... [...]. “Um cancro” – pensava ainda Adriano. “Estará certa essa doença para ti, pobre velho? Que tu possas ser forte, ainda que apodrecendo. Como no teu sonho de sempre...” (Apelo da Noite, p. 84-85). A doença do pai vai arrastar-se lentamente, mas Adriano sabe-se cada vez mais condenado à morte – à dos outros e à própria – e portanto mais só e mais carente de objetivos que justificassem a sua breve passagem pela vida. Faz então quase um inventário das mortes à sua volta: Lídia morrera; recorda vários professores que tivera em Coimbra, mortos no decorrer do curso. Também Rodrigues, o estudante que “plantara a vida no sonho”, mas “o sonho apodrecera” [...] . Queria que o sonho durasse. Segurar o instante perdido – as gerações novas chegavam, partiam, ele ficava ainda. Uma bala suicida sagrou-o enfim jovem para sempre.” (p. 25). Também Vitor morre, e Rute, poetisa e vagamente amante de Adriano, suicida-se, repetindo o gesto de uma velha tia-avó, ou bisavó, só conhecida na imagem de uma fotografia antiga e que se matara aos vinte anos. “Levanto os olhos, não vejo senão morte” (p. 208). “– Trago a morte em mim como uma doença. Tudo morre à minha volta. Trago a peste comigo...” (p.175). Este lamento de Adriano extravasado no momento do suicídio de Rute, não só o conscientiza do tamanho da sua solidão, como de alguma forma ecoará, como um lamento trágico de todos os homens, em outros momentos da obra de Vergílio Ferreira. O suicídio passa a ser tema de reflexão freqüente, em Apelo da noite. Também o tinha sido na literatura existencialista, de onde visivelmente decorre para o romance de Vergílio Ferreira. É o tema de abertura de O mito de Sísifo, de Camus, no ensaio “Um raciocínio absurdo”: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida". Passará também a ser um problema entre os muitos que compõem a discussão permanente em que Adriano Mendonça se debate. Ele constata o suicídio praticado por um estudante que desejava ser jovem para sempre (e assim “o sagrou uma bala suicida”), constata-o ainda mais próximo de si, praticado por uma mulher jovem, que ele talvez amasse mas a quem dá argumentos para pôr fim à vida porque a existência é absurda e não vale a pena viver, e descobre que o suicídio pode ser “disfarçado” em ação, em “ato de heroísmo”. É este que de algum modo decide praticar, ou assume o risco de que ele “aconteça”, quando aceita participar da ação planejada pelo grupo clandestino para dar fuga a dois presos políticos. É nessa ação que Adriano vai empenhar o que lhe resta de vida, depois de a ter empenhado em pensar a Arte, a política, a história, a filosofia, a vida, a morte... Adriano substituirá a reflexão pela ação. Depois do desmantelamento da Frente da Cultura pela polícia, da prisão de alguns dos companheiros que a integravam, da traição ou do “amolecimento” de alguns deles culminando com a prisão de Aires, do suicídio de Sílvio que não suportou as conseqüências de haver traído... Depois de tudo isso e fascinado pelo suicídio que parece conferir perfeição ao imperfeito, Adriano participará da execução do plano de fuga dos dois presos políticos. É então que começa a sua viagem sem regresso. Como que ao irresistível apelo da noite, Adriano guia o velho carro Packard do pai, noite adentro, de Lisboa para o interior do país, para a Beira, para a montanha onde seriam escondidos os fugitivos. Teria ali a oportunidade para viver o seu ato de heroísmo, a ação que lhe sagraria a justificativa da vida. Seguidos pela polícia sem que o soubessem e cercados à noite na casa onde se refugiaram, Adriano resistiria sozinho ao fogo aberto pelos policiais, tentando dar cobertura à fuga dos outros, até ser atingido por uma bala. "Invadia-o uma fraqueza cada vez mais profunda, como se fosse apenas fadiga de estar pensando. E caiu. Nome de Deus, vou morrer! Turvaram-se os olhos, turvaram-se o pensamento. Então, uma fúria estranha, ou uma evidência estranha clamou nele até aos astros submersos: – Glória ao... Viva o... Glória! Não. Ninguém gritou. Só o silêncio. E uma paz cada vez maior, tão vasta como o céu e a montanha e os sonhos milenários dos homens. A porta. Alguém entrando. Homens escuros de arma apontada. Não. Ninguém. Nada. Nada. ( p. 258). Adriano consegue, finalmente, “resumir a vida numa ação decisiva”, viver (ou morrer) esse instante-limite capaz de fundamentar a existência em grandeza. Praticou, afinal, uma outra forma de suicídio, tentando dar perfeição ao imperfeito, transformar o relativo em absoluto, mudar a idéia em ação. De uma perspectiva realista é bem possível que o desenlace trágico de toda a trajetória existencial de Adriano seja equivocado. Mas é no plano simbólico que tudo isso tem de ser considerado, porque a morte de Adriano, ao invés de um absoluto em si, acaba por mostrar a relatividade da sua ação e do seu heroísmo. É a partir dela que se compreende melhor o significado do poema de Décio Ramos de que um breve fragmento é várias vezes repetido ao longo do romance: “Custa ser homem, Senhor! Custa sobretudo, porque é infinita a distância que vai da razão lúcida à paz da consciência” (p. 27). Adriano percorrera essa infinita distância a partir da lucidez do seu pensamento, e alcançou, com a ação em que fez culminar o percurso da existência, a paz interior, tão angustiadamente desejada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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