"O silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me nos ossos. É o silêncio do mundo, da minha condição. [...] Foi fácil liquidar os deuses e semideuses de todos os meus sonhos, de toda a minha inquietação. Mas ao fim de todas as mortes, nos limites do silêncio, há um fantasma sem nome, oblíqua presença de nada. Se eu pudesse dar-te um nome a ti, quê? quem? só assim te mataria talvez. Um nome, rede invisível, irreal prisão de sons breves. Mas não há um nome para ti. Absurda invenção do homem, espectro instantâneo.Subitamente um indício, um aviso. [...] Vem a voz desde a caverna e do mito, desde o olhar grosso e animal. Em sucessivos nomes se calou, por que falar ainda? [...] A terra é estéril e virgem, é a hora do recomeço perfeito. E todavia às vezes hesito: quem te garante? Entregarás, ao teu filho, o silêncio total. Mas quem te garante que ele não vai errar outra vez? Quem te garante que a voz se calará com a tua voz? Como saber que a voz não se erguerá da própria terra?" (Alegria Breve)
O romance Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, publicado em 1965, apresenta um narrador que expõe suas percepções presentes e suas sensações referentes à memória do tempo em que a aldeia, lugar onde vive, ainda era povoada. A história é muito singela: uma aldeia é explorada por suas minas de volfrâmio; esgotado o minério, o lugar é abandonado. Mas um único habitante resiste, Jaime Faria, que vai recordar, num futuro, fatos e sensações passadas referentes à sua experiência de vida naquele lugar. A simplicidade do enredo é contrastada com a complexidade da personagem, o que se caracteriza como uma tendência recorrente nos romance modernos. O autor moderno ocupa-se com a vida intricada da personagem, e, para apresentar essa complicada experiência interior, o romancista deixa em segundo plano o enredo, justamente porque quer dar ênfase à personagem. Mas a complexidade, nessa obra, não é apenas da personagem; as preocupações ensaísticas do autor, como também as estruturas ficcionais apresentam-se complexas. Vergílio Ferreira emprega, nessa narrativa, recursos próprios da linguagem poética, especificamente os do texto lírico, ou seja, há a preocupação artística na elaboração do nível sonoro da frase, bem como a presença de mitos e símbolos. A estrutura é composta de fragmentos, como num mosaico em que tudo é presentificado na memória do narrador. Embora não nomeada, a aldeia, tal como é mencionada em Alegria breve, refere-se, em um primeiro momento, a um lugar particularizado: uma região de Portugal em que minas de volfrâmio são exploradas. Este é o lugar exterior que dispõe o inominado espaço interior do narrador Jaime Faria. A aldeia é o espaço físico que sugere ao narrador, Jaime, dimensões espaciais interiores que dificilmente podem ser nomeadas. Uma aldeia vazia é o espaço onde se encontra o narrador. Nesse espaço vazio, de proporções ampliadas (pois a aldeia se insere em uma vasta região abandonada), ele percebe sua imensidão íntima proporcionada pela dimensão do exterior, a aldeia. Não há convivência social no presente momento em que ele se recorda de situações passadas e estabelece perspectivas futuras. Por isso, estando só em um lugar privilegiado, uma aldeia com dois montes imponentes, o sol, a neve e o vento, ele pode pensar na condição de seu ser, ou na inquietação de seu ser, de sua existência. Os recursos poéticos empregados em Alegria breve buscam constituir uma linguagem que supra as deficiências dos conceitos, que não atingem a comunhão do homem com o verbo. Ao mesmo tempo que o verbo é inerente ao homem, também é impreciso, uma vez que a linguagem não consegue expressar toda a complexidade da experiência humana. Assim, deixando o pensamento divagar pela corrente rítmica, o autor cria imagens para exprimir o que, na lógica convencional, é inexprimível. Vergílio Ferreira, deixando fluir o idioma, confere à frase imagens e sentidos que são estabelecidos pelo próprio ritmo do pensamento. A prosa se poetiza numa cadência de maré que vai e vem, que cai e se levanta no fluxo do pensamento: "Um oco de silêncio escava-se vastamente no vazio do universo. É um silêncio opaco como o de uma cripta saturada de uma compressão de ecos — virá sol? Uma nódoa luminosa repassa como gordura, lá ao alto, a pasta grossa das nuvens. A luz íntima da neve começa a vir à superfície, imperceptivelmente cintila. Neve instantânea, neve intacta, só eu a uso. Filamentos de seda delimitam o desenho das coisas. Fímbria, timbre, limite — que inverossímeis palavras? que finas titilações? tinidos da memória, ouço-os. A neve estende aos meus olhos a esterilidade de tudo, o início limpo. Gravo nela a minhaanimalidade quente e escura" (Alegria Breve). Jaime precisa dizer a si mesmo suas reflexões acerca dos sentidos da vida. É dessa maneira que vai buscando novos significados para sua existência. Esse sentido novo é percebido quando proferido pela linguagem poética, que, somente ela, pode expressar a complexidade da condição humana. Em Alegria breve, um dos muitos símbolos, que fazem expandir a constelação imagética, são: o silêncio, o sol e a luz. Segundo o dicionário de símbolos o silêncio é um prelúdio de abertura à revelação; [...] abre uma passagem. Segundo as tradições, houve um silêncio antes da criação, haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos; dá às coisas grandeza e majestade; marca o progresso. O silêncio, dizem as regras monásticas, é uma grande cerimônia. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2000, p.833-834). Transpondo a definição para o romance, o silêncio é a revelação de uma percepção nova, de quem está sozinho e compreende a grandeza do ser humano. É a força do pensamento para a realização do novo, por meio de uma simbiose com o espaço, ou seja, com a terra, com o sol, com a luz, com a alvura da neve... O silêncio prepara o homem para a percepção de toda a grandeza da vida. Uma vez inserido num espaço onde não haja silêncio, não é possível ao sujeito tal percepção, pois os ruídos urbanos, por exemplo, ocultam os pequenos detalhes inerentes ao silêncio que revela a “imensidão interior” do narrador. Desse modo, essa preparação do silêncio proporcionado pelo espaço exterior é uma cerimônia de iniciação do indivíduo para a compreensão de seu espaço interior. Outro símbolo relacionado ao romance é o sol, que na iconografia cristã, é considerado o símbolo da imortalidade e da ressurreição, ou seja, do eterno renascimento para a vida. A pergunta feita por Jaime é: "virá sol?”, repetida em vários outros trechos, sugere que ele acredita, ou pelo menos precisa acreditar, na necessidade da recriação da própria vida a partir de uma linguagem que, ao renomear tudo, crie um mundo novo. Assim como um cristo ateu, ele é o seu próprio salvador, o designado por si mesmo, ele está só, não há alguém que possa fazê-lo para reordenar o mundo. Ao longo da obra, a luz do sol, com sua presença reiterada, simboliza a renovação da vida. A luz é conhecimento. Segundo São João (1, 9), a luz primordial identifica-se com o verbo; o que exprime de certo modo a irradiação do sol espiritual que é o verdadeiro coração do mundo. Em um determinado momento Jaime exclama: "“A luz íntima da neve [...], só eu a uso”. Entendemos que a luz nos sugere, juntamente com o silêncio, “o primeiro aspecto do mundo informe”, do mundo que poderá recriar-se a partir da luz que é revelação, intuição do ser a respeito da amplitude da sua própria existência. O silêncio, associado à luz do sol e à luz branca da neve, que revela ao nosso narrador toda a possibilidade de recriação da vida por meio da palavra. Esse narrador, deus de si mesmo, pode, com esses elementos, fazer ressurgir o sentido do mundo e com ele o da vida
Referências Bibliográficas:
BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad.: Antonio de Padua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
BIEDERMANN, H. Dicionário ilustrado de símbolos. Trad.: Glória Paschoal de
Camargo. São Paulo: Melhoramentos, 1993.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad.: Vera da Costa
e Silva et al. 15.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
FERREIRA, V. Alegria breve [1965]. São Paulo: Editora Verbo, 1972.
Referências Bibliográficas:
BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad.: Antonio de Padua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
BIEDERMANN, H. Dicionário ilustrado de símbolos. Trad.: Glória Paschoal de
Camargo. São Paulo: Melhoramentos, 1993.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad.: Vera da Costa
e Silva et al. 15.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
FERREIRA, V. Alegria breve [1965]. São Paulo: Editora Verbo, 1972.
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