domingo, 22 de julho de 2012

Vive o Dia de Hoje!




Vive o Dia de Hoje!

Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro. 

Vergílio Ferreira, in "Escrever"

Breve Explicação do Sentido da Vida!




Breve Explicação do Sentido da Vida!

Como exprimir em duas linhas o que venho tentando explicar já não sei em quantos livros? A vida é um valor desconcertante pelo contraste entre o prodígio que é e a sua nula significação. Toda a «filosofia da vida» tem de aspirar à mútua integração destes contrários. Com uma transcendência divina, a integração era fácil. Mas mais difícil do que o absurdo em que nos movemos seria justamente essa transcendência. Há várias formas de resolver tal absurdo, sendo a mais fácil precisamente a mais estúpida, que é a de ignorá-lo. Mas se é a vida que ao fim e ao cabo resolve todos os problemas insolúveis - às vezes ou normalmente, pelo seu abandono - nós podemos dar uma ajuda. Ora uma ajuda eficaz é enfrentá-lo e debatê-lo até o gastar... Porque tudo se gasta: a música mais bela ou a dor mais profunda. Que pode ficar-nos para já de um desgaste que promovemos e ainda não operamos? Não vejo que possa ser outra coisa além da aceitação, não em plenitude - que a não há ainda - mas em resignação. Filosofia da velhice, dir-se-á. Com a diferença, porém, de que a velhice quer repouso e nós ainda nos movemos bastante. 

Vergílio Ferreira, in "Um Escritor Apresenta-se"

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A verdade é amor...



A verdade é amor — escrevi um dia. Porque toda a relação com o mundo se funda na sensibilidade, como se aprendeu na infância e não mais se pôde esquecer. É esse equilíbrio interno que diz ao pintor que tal azul ou vermelho estão certos na composição de um quadro. É o mesmo equilíbrio indizível que ao filósofo impõe a verdade para a sua filosofia. Porque a filosofia é um excesso da arte. Ela acrescenta em razões ou explicações o que lhe impôs esse equilíbrio, resolvido noutros num poema, num quadro ou noutra forma de se ser artista. Assim o que exprime o nosso equilíbrio interior, gerado no impensável ou impensado de nós, é um sentimento estético, um modo de sermos em sensibilidade, antes de o sermos em. razão ou mesmo em inteligência. Porque só se entende o que se entende connosco, ou seja, como no amor, quando se está «feito um para o outro». Só entra em harmonia connosco o que o nosso equilíbrio consente. E só o consente, se o amar.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Cartas a Sandra.





"(...) O amor é tão monótono, querida. Porque ele é o cimo sensível de uma imensidade de coisas que se esqueceram. Como falar desse mínimo que é o vértice de todo um mundo que o sustenta? Falar de nada, que é o todo nele? Sandra. Podia dizer o teu nome infinitamente na multiplicação do que nele me ressoa. E é assim o que mais me apetece, dizê-lo dizê-lo. E ouvir nele o maravilhoso que me abala todo o ser. Poderia escrever o teu nome ao longo do que escrevo e teria talvez dito tudo. Mas eu quero desse tudo dizer também o que aí se oculta. Dizer o meu enlevo e a razão de ele me existir. As tuas mãos nas minhas. O incrível miraculoso de eu dizer o teu rosto. O ardor de um meu dedo na tua pele. Na tua boca. O terrível dos meus dedos nos teus cabelos. O prazer horrível até à morte da minha entrada no teu corpo."

Um pequeno romance composto essencialmente por dez cartas de amor, "Cartas a Sandra" representa um epílogo ao romance "Para Sempre", do mesmo autor. O ideal do amor, já sobejamento dissecado em "Para Sempre", é neste romance ainda mais sublimado em cartas escritas por Paulo à sua amada após a sua morte. A catarse de um amor inesgotável, descrito das mais variadas formas, um amor tão forte que todas as palavras não o conseguem circunscrever e onde a dimensão metafísica desempenha um papel apaziguador no desespero obsessivo de Paulo na evocação da memória de Sandra. Num estilo sóbrio embora angustiado, sem recorrer a frases ou expressões corriqueiras próprias de adolescentes nas suas mensagens de amor, Vergílio Ferreira explora a fundo a capacidade de amar do ser humano levada ao extremo, traduzida num viver perto da loucura, num desespero sereno de evocações comoventes enfatizadas numa dignidade de pensamentos filosóficos que transcendem em todo o seu esplendor metafísico a figura do amor elevado ao purismo do sentimento e à degradação da sua carne, numa fuga rumo à eternidade que é o expoente de todo o amor. 

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Paulo passa os últimos dias da sua velhice escrevendo cartas a Sandra, esposa há muito falecida, recordando a sua vida em comum bem como a sua relação com Xana, a filha que muito cedo abandonou a casa da família. Trata-se do testemunho pungente, mesmo desesperado de um homem apaixonado a quem faltou vida para desafiar a morte da mulher amada. Para Paulo o tempo estacionara na morte de Sandra. No entanto, o amor perdurou para lá da sua morte, como um espinho cravado no seu coração. À procura de paz na memória de Sandra, Paulo encontra mais e mais sofrimento. Essa memória é sempre incompleta porque é por Sandra, por toda ela que Paulo clama. Pelo seu espírito, pelo seu amor mas também pelo seu corpo e pela sua vida. Assim, o tom melancólico, por vezes quase tenebroso, destas cartas constitui a imagem acabada da solidão; uma imensa solidão. Cartas a Sandra constitui, por outro lado, um documento importantíssimo para compreender a personalidade do autor, na sequência do romance auto-biográfico Para Sempre. Assinadas por Paulo, elas são o retrato de uma vida sofrida pela perda dos pais na infância, os anos promissores da universidade, na idade de todas as esperanças, mas também, mais tarde, o abandono por parte da filha, Xana, e a morte trágica de Sandra. Restou uma imensa solidão que marcou os seus últimos dias. Depois de tudo (da morte até) restou o amor; mas um amor sofrido e excessivo: “havia em ti divindade bastante para estar certo o que me doesse”…

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Na tua Face.





"Estávamos cheios de imensas coisas em suspenso e havia um leve murmúrio do rio só de vê-lo correr. Devia haver um grande silêncio no Mundo porque nos ouviamos ser"


" Todo o homem só ama a mulher que não existe. E bom é isso. Porque se ela existisse, o amor deixava de existir. Mesmo que ele a ame como supõe. Porque todo o amor só existe nos intervalos de a pessoa amada existir. Fora desses intervalos não existe."

"Então olhei-a em deslumbramento e terror no intocável do seu ser. Queria ver-lhe os olhos verdadeiros e a boca e a face, mas não estavam lá. Porque eram só uma aparição difusa incontornável como a luz do ar que não se via e era só iluminação. (…) Via-lhe a face mas só no impossível como lha vejo agora."

"E imprevistamente era aí que eu repousava, na tua face, na imagem final do meu desassossego."

 Daniel conhece Bárbara que exerce nele um extraordinário fascínio, mas casa com Ângela que não ama (ou que ama de outra forma) e continua, pela sua vida fora, convivendo através da memória com o amor impossível que sente por Bárbara, em lembranças que vêm por si, sem que ele as chame.  Tudo nesse amor evocado por Daniel é duplo: Ângela e Bárbara são duas faces da mesma moeda que o acompanharão sempre. Ângela será a presença constante na conjugalidade partilhada da casa, dos filhos, das férias, mas também das leituras, das conversas, dos momentos de dor e silêncio… Bárbara será o objecto da evocação obsessiva; manter-se-á presente na memória de um breve instante, no eco de um chamamento, como manifestação de plenitude, de perfeição, de eternidade, a face que se vê, mas só no impossível. Ângela é o corpo, Bárbara a aparição.

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domingo, 15 de julho de 2012

"Eu só acreditaria num Deus que soubesse dançar." Friedrich Nietzsche.



“Espera, deixa-me ver-te devagar. Dás uns passos, bates uma palmada no chão e sobes alto e lá no ar dás uma volta sobre ti, mas antes de caíres de pé, imóvel, fico a ver-te parada no ar. Corpo elástico, esguio, fico a ver-te. Flutuas imponderável, a Terra não tem razão sobre ti. Vejo-te no espaço, todo o corpo elástico numa curva dos pés até ao extremo das mãos, ou talvez não, recomeça o salto para ver melhor. Talvez o corpo não em prancha ao alto mas enrolado sobre si e giras no ar em rodízio até te desenrolares e caíres depois em pé firme. Queria dizer-te como isso me maravilhou, o teu corpo poderoso, desprendido das coisas, liberto da sua condição bruta, feito de um esplendor imaterial. Terei dito bem? Imaterial. Quanta coisa havia nele, os teus ossos, as tuas vísceras, mas tudo existia leve e eu só lhe via a sua forma perfeita de voo. Há uma órbita da exactidão como se diz dos astros e tu seguia-la, um rigor matemático com que o universo existe. (…)Bati palmas, elas ressoaram pelo espaço do Olimpo. Não fui bem eu que as bati mas o duplo de mim, não te sei explicar. As palmas foram à frente e eu já não as pude apanhar. Porque o homem, minha querida, tem sempre em si um outro de si e só num tarado é que os dois coincidem. Também não sabia bem porque o fiz, agora sei. Claro, havia a destreza, a perfeição da tua realização, mas agora sei que havia outra coisa. Queria dizer-te simplesmente que havia o teu corpo, mas não chega. Havia outra coisa – que coisa? Mónica, minha querida. Havia, deixa-me pensar. Ah, poder falar do teu corpo. Perder o pé da realidade. Fechar à volta uma cortina para que nada de ti me fugisse e ficar eu só diante de ti. Sinto agora alguém dentro de mim a perguntar e depois? que é que aconteceu? Sei lá o que aconteceu, quero lá saber. Quero é estar contigo no nada do tudo o que acontecer. Saturar-me da tua presença. E ver-te. E ver-te. Que importa o que "acontece"?”



Ferreira, Vergílio, Em Nome da Terra, 10.ª edição, Lisboa: Quetzal Editores, 2009, p. 28 – 29

Em nome da Terra.





"Tenho nas mãos a memória do teu corpo, do boleado doce do teu corpo. As pernas, os seios, deixa-me encher as mãos outra vez. O fio ardente da tua pele. A face. Mal te vejo os olhos, mas o teu olhar cai sobre mim em torrente. Despi-me brusco, deitados os dois na areia, e a fúria, e o limite. E uma só verdade para nós e o universo. Deitados de costas, lemos as estrelas. A paz enorme de horizonte a horizonte. A eternidade. E a necessidade de estarmos lá, para não haver mais nada para fora de nós. Depois erguemo-nos, mergulhámos nas águas."

"Quero é aproveitar o tempo, eu que estou em mim para estar todo no que te digo. Uma vontade absoluta de te amar, que o  absoluto é a medida humana, é assim. Atravessei o horror e a humilhação. Atravessei a miséria e o que nela apodreceu do meu corpo terrestre. Lembro-te, penso-me. Está uma noite quente, deve ser o fim do verão. Lembro-te agora intensamente e a tua perfeição está no fim do meu lembrar. Esta-se lá bem, no lembrar."

"Mas de repente começa-me a chover na memória. Não me perguntes porquê ."


João, personagem principal, viúvo, decide viver os últimos anos de vida num Lar, doando todos os seus bens à sua filha Márcia. Para si, guardou apenas, a memória, um Cristo mutilado, um desenho de Dürer, uma reprodução de um fresco de Pompeia e um disco de Mozart - concerto para oboé. Estes símbolos percorrerão a narrativa, estabelecendo uma relação analógica com o corpo, a morte, o esplendor e a beleza. Temporalmente situado no tempo "último" do narrador, este romance constitui-se como um bonito mas doloroso louvor ao amor e ao seu objeto - a sua mulher Mónica, já falecida. Através de um diálogo sem resposta, profundamente intimista, João dirige-se a um "Tu" fisicamente ausente, Mónica, de cujas lembranças se vai alimentando. 





http://www.infopedia.pt/em-nome-da-terra



   



Até ao fim...




O protagonista, Cláudio, relata-nos a trágica história da sua vida de casal com Flora e o seu jovem filho Miguel, que mais tarde se revela viciado em droga e morre num tiroteio em uma operação policial. Entendendo o ser como parte integrante de uma ordem universal, aceitando a condição humana limitada mas ao mesmo tempo desejando o infinito ou a imortalidade.

"Eu disse que o sentir era hipócrita? Não é verdade. É o que está mais próximo do ser. (...) Mas só as palavras o esclarecem, só nelas o sentir é verdade assumida. Gosto de me assumir em tudo o que sou."

"Sentia-me violentamente ofendido, mas não o mostrava. Porque sentirmo-nos ofendidos é afirmarmos a eficácia de quem nos ofende. Só o podemos mostrar quando a nossa dignidade está em causa. Mas só o está quando a importância do outro é inegável"

"A dor dói sempre o mesmo, a diferença está em nós"

http://oquemefazcorrer.blogspot.com.br

O monólogo de um pai durante o velório do filho. Um homem passa a noite numa capela sobre o mar a velar o corpo do filho, um jovem adulto, deliquente e toxicodependente. Durante essas horas, vai contando na primeira pessoa a história da sua vida e dirige-se ao filho morto.

Até Ao Fim é um romance de sofrimento pautado pelo constante negativismo. Na sua essência, a história é simples - um jornalista vê o filho perder-se no mundo das drogas ao mesmo tempo que tenta encontrar sentido em sua vida romântica passada. Cláudio, personagem principal, é um homem envelhecido por uma vida desgastante e faz a sua intensa reflexão na noite em que o filho Miguel  morre. Sem força para guiar  sua vida até agora, é no fatídico amanhecer que algum sentido é capturado por Cláudio, sendo que "a vida toda dentro dele" é um pensamento conclusivo das rédeas do seu destino. 

http://www.goodreads.com/book/show/9357950-at-ao-fim

Nesta obra, o autor parece entender o ser como parte integrante de uma ordem universal, e a condição humana é abordada sob dois aspectos metafísicos essenciais: a limitação( morte ) e desejo de infinito( imortalidade ).

http://pt.shvoong.com/books/romance

sábado, 14 de julho de 2012

Para Sempre...




Nasce-se todo inteiro, mas morre-se apenas a parcela do todo que nos foi morrendo ao longo da vida e nos tinha em pé. Por isso a morte mais natural de um velho é cair para o lado.

Não te entristeças por não poderes já ver o que verão os que vierem depois de ti. Porque depois de mortos, terão visto exactamente o mesmo que tu.

Vir a morte e levar-nos. E não fazermos falta a ninguém. Nem a nós. Que outra vida mais perfeita?.

Sê alegre apenas depois de dares a volta à vida toda. E regressares então a uma flor, ao sol num muro, a um verme no chão. A profunda alegria não é a do começo mas a do fim.

Quais são as tuas palavras essenciais? As que restam depois de toda a tua agitação e projectos e realizações. As que esperam que tudo em si se cale para elas se ouvirem. As que talvez ignores por nunca as teres pensado. As que podem sobreviver quando o grande silêncio se avizinha.

Não poderás vencer a morte. Mas impõe-lhe a vida como um bandarilheiro e verás que muitas vezes ela marra no vazio.

Os grandes sistemas do pensar, da ciência, as grandes correntes literárias e artísticas, os grandes ideários políticos ou religiosos. Tudo passou. Restos detritos fragmentos. Toma o teu bocado e senta-te no vão de uma porta a comê-lo.

Vergílio Ferreira

Paulo é um homem só. Na fase final da sua vida recorda Sandra, a mulher que amou. Sandra morrera de cancro. Recorda Xana, a filha que foi morrendo no abismo da droga. A mãe que morrera na sua infância; as tias o padre que o atormentaram com uma religião beata que nunca respondeu aos seus pedidos de misericórdia. Memórias que flutuam no rio estéril da memória…A melancolia de um tempo que chega ao fim, um tempo que pareceu eterno nas promessas de que é feita a vida, mas que desemboca inexoravelmente na solidão, no pessimismo, na visão negra da vida. Neste livro, Paulo aguarda a morte numa imensa introspecção onde os tempos múltiplos da vida são revistos com mágoa, com o sofrimento que só a linguagem poética de Vergílio Ferreira consegue exprimir. A morte com que se inicia o livro é a mesma, negra e impiedosa com que ele termina; a morte que está em todos os cantos da vida… a morte, esse fantasma permanente…Para Sempre é um livro de mágoas; um livro pessimista, negro, macabro; um livro sobre a vida, sobre a necessidade de a pensar mesmo que no fim dos tempos, no momento em que nada mais o pensamento poderá mudar. Mas é também um livro sobre a morte como redenção; como o remédio único e fatal para o sofrimento; para a culpa e a podridão; para a vida. A morte como o fim desse sofrimento prolongado a que Paulo chama vida. É um livro difícil de ler; não que a linguagem nos atrapalhe; não que o enredo seja emaranhado ou confuso. Não… é difícil de ler porque dói. Faz doer. O sofrimento que sai da caneta de Vergílio atravessa as páginas e vem de encontro ao leitor, apanhando-o desprevenido. E vai directamente à alma de quem lê, sem piedade. Nas letras, palavras e frases vê-se a dor; sentem-se as lágrimas; encaixa-se os socos da revolta.  Vemos Paulo e verificamos que podíamos ser nós. Vemos Paulo e não temos pena; sofremos com ele; temos pena de nós. Não lamentamos a vida de Paulo; lamentamos a vida.

http://aminhaestante.blogspot.com.br/2011/02/para-sempre-vergilio-ferreira.html

No final de uma vida, entrando no seu epílogo, um homem já sem destino para cumprir medita sobre o seu passado e o seu futuro, no regresso a uma casa vazia onde passou parte da sua infância, povoada de fantasmas que evocam os momentos chave da sua existência. Recheado de flash-backs para o passado e para o futuro, a antevisão, real e com todos os detalhes, da degradação da sua velhice e do seu funeral. Inicia-se, em Paulo, a derradeira tentativa de procura da explicação de um sentido para a vida. Nesta narrativa de evocações aleatórias, centrada no romance de Paulo com Sandra, mulher difícil e de poucos sentimentalismos, último alicerce num mundo de ilusões. Vítima do seu próprio pensamento,  questionando a sua condição humana e a dos outros, comparando-a até ao fim dos tempos, um lamento arrastado mas pontuado por algumas fagulhas de lucidez e outras de felicidade passada e presente, onde persistem ainda mais perguntas que respostas. A paz nunca chega, para sempre continua a percepção do abismo entre aquilo que se é e aquilo que se sente.

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ferreira, Vergílio- Para Sempre. Lisboa: Bertrand [1987].

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Signo Sinal.




Apague as pegadas:


Cuide, quando pensar em morrer
 Para que não haja sepultura revelando onde jaz,
Com uma clara inscrição a lhe denunciar
 E o ano da sua morte a lhe entregar,
 Mais uma vez: Apague as pegadas!

 Bertold Brecht

"E, com efeito, as obras recomeçaram. Outra vez os operários regressavam dos subsídios de desemprego e dos retroactivos salariais, o comércio reanimou, havia putas novas vindas de fora. E imediatamente pás, picaretas e escavadoras, os cilindros de terraplenagem, uma grande rede de trincheiras foi-se abrindo para os alicerces. Um homem desconhecido, vestido de bruto, botas ferradas, um fato grosso, eu via-o com papéis na mão, ia de grupo em grupo dar instruções. Punha-me a olhar o emaranhado das valas, a imaginar a aldeia recostruída e as distâncias e o jogo possível das relações humanas. Imaginava as ruas, as casas reerguidas, o reencontro dos homens consigo, com os seus sonhos e esperanças e enredos e conflitos, o envelhicimento das coisas pelos séculos e a nova ordenação da vida sob a eternidade dos céus."
 Signo Sinal.


Em pleno tempo de pós-revolução (25 de Abril), uma aldeia é quase inteiramente devastada por um terramoto. Um dos seus muitos sobreviventes, herdeiro de uma pequena fábrica erguida pelo seu falecido pai, sem qualquer vocação para nada de prático na vida, sempre dado às letras e à reflexão, constata o absurdo da condição humana e da inútil tentativa entusiástica da mudança do estado das coisas. Uma aldeia em ruínas e um planejamento que não se concretiza nunca, o narrador segue contando pequenas histórias de uma época de vida coletiva e experiência compartilhada, que faz contraste com o mundo moderno, a perda da memória e a vida esvaziada de sentido. O que se percebe em Signo Sinal é uma crítica à modernidade que promete o progresso e entrega devastação. O que restou da antiga aldeia foi somente uma  terra rasa de ruínas. Em torno do narrador de  Signo Sinal, um dos sobreviventes, apenas as ruínas das casas e dos habitantes. É neste cenário que Luís começa a por sua memória em movimento. São os mortos da sua lembrança que retornam, são vestígios de um passado recente. A aldeia, os moradores e a memória estão soterrados pelo terremoto chamado progresso.



FERREIRA, Vergílio. Signo Sinal. Lisboa, Bertrand, 1990.
http://revistaliter.dominiotemporario.com
http://www.citador.pt/




domingo, 8 de julho de 2012

Rápida, a sombra.



Na casa do alto do monte, dormi bem. [...]. Vou a pé até lá abaixo, [...]. Fica em baixo, a aldeia, eu moro em cima, num monte. Construí aí uma casa, ainda meus pais eram vivos. [...]. Comprei um terreno no alto, façamos aqui a nossa morada. Gosto disto, sou  irremediavelmente daqui – sobretudo agora que não tenho mais donde ser. (Rápida, a sombra). 

Regresso, pois, a casa, regresso à aldeia. Oh, sim, vão sendo horas. Abrando a marcha à entrada da ponte, viro à esquerda. [...]. Rolo devagar pelo empedrado da rua que sobe ligeiramente. E a olhos lentos vou 
descobrindo o meu reino. Como se expulso, velho senhor, condenado ao exílio, o meu reino. Retornar ao princípio? Fechar o círculo,[...]. Regressa aos teus mortos. Vão sendo horas. [...].  Aqui estou. Para 
sempre. (Rápida, a sombra).

Chego à aldeia, meto a chave à porta da rua, há ainda claridade pelo ar. Compacta de silêncio, raiada de horizontes ao balancear dos espaços, a casa. Meto a chave, rodo o fecho a duas voltas, puxo o trinco. [...]. Que dorme ainda incerto, batido da frialdade do meu sepulcro.  Aqui estou. Pela porta aberta entra comigo um halo de claridade, esboça as coisas na sombra. E é como se aberta a porta do meu jazigo, eu estendido ao meio da sala e à minha volta as coisas mortas comigo. Entro medroso, abro as janelas, debruço-me a uma delas para o sem fim. O sol vagueia ainda pela cabeça dos montes, a aldeia apaga-se de sombra lá ao fundo, o silêncio alastra pela quietude da terra até à neblina da distância. Fecho a vidraça, sento-me num sofá – é pois certo que venho para morrer. (Rápida, a sombra).


A partida, a viagem e o regresso estão entre os temas recorrentes dos romances de Vergílio Ferreira. A partida e a viagem relacionam-se, via de regra, com a necessidade que tem o protagonista de romper com a situação estática e aprisionantemente estreita do seu meio para ir em busca da Prosperidade, da Liberdade e do Saber. Estão por vezes associadas, ou são conseqüência, de grandes perdas  que determinam mudanças de rumo na vida dos protagonistas ao peso de um autoritarismo contra o qual um “herói” em formação e ainda extremamente jovem (e também extremamente necessitado), não tem ainda forças suficientes para se opor. No caso, a descoberta e o uso dessas forças, a seu tempo, farão parte do lado trágico da formação do narrador. A partida é sobretudo comum aos protagonistas jovens, e assim faria parte de um processo de conhecimento do mundo e de si mesmos. O regresso ao local de onde inicialmente haviam partido, é intermitente e temporário, entre os protagonistas jovens e saudáveis, e definitivo entre os velhos e os que, o não sendo, se encontram precocemente próximos do fim. Este regresso para sempre destina-se a fechar um 
ciclo, o da vida, ao fim do qual é necessário retornar ao ponto de partida.

GODINHO, Helder.  O universo imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.

Em  Rápida, a sombra o tema do regresso é retomado com a mesma evidência e o mesmo fulgor (ou ainda maiores) já conhecidos de  Cântico final. O regresso de Júlio Neves à sua aldeia (dado apenas em termos imaginários) desdobra-se, prolonga-se e repete-se. A partir dos devaneios de Júlio, que, para fugir ao cansaço e esgotamento de tudo e à mediocridade das reuniões citadinas com literatos menores e falsos artistas, refugia-se, em pensamento e desejo, na pureza solitária da sua aldeia de origem.Voltar  para a aldeia é um desejo que em Júlio se vai instalando discretamente,comedidamente – “Regressar à aldeia, à origem , estou tão cansado." O livro desenrola-se em dois (talvez três) planos de ficção, em espaços distintos: a praia, o escritório e, a aldeia (a casa dos pais e a sua no monte). Iniciam-se separados mas vão-se interligando, entretecendo uma trama em que se fundem inteiramente e se tornam difíceis de distinguir as oscilações entre a imaginação e a recordação. Talvez a única coisa que nos ajude a distinguir o real do sonho seja a presença da figura da mulher; a sua, Helena, ou a sonhada, Hélia. Ou então também pode ser que tudo não passe de um plano só em que só o sujeito se narre a si mesmo e tudo o resto seja apenas o intrincado dos seus sonhos, das suas realidades lembradas, das suas realidades sonhadas e, fundamentalmente, dos seus medos.

Ferreira, Vergílio- Rápida a Sombra. Lisboa: Bertrand, 1979.

"Desassossegadamente à sombra de Pessoa" Carla Freitas Martins



 Seria possível que surgisse ingenuamente o nome de Alberto Soares em Aparição?



É um estudo da autora Carla Freitas Martins que pretende debruçar-se, sobre a questão da influência de Fernando Pessoa na obra de Virgílio Ferreira. É  muito interessante compreender qual foi a influência do poeta nos autores, seus contemporâneos. Há a presença quase esmagadora de Pessoa sobretudo na geração seguinte, que floresce para a escrita nos anos 50. Muitos desses autores vão rebelar-se contra Pessoa, escrevendo "contra" ele, mas afinal apenas com o objetivo mais amplo de eles próprios poderem encontrar o seu espaço. Foi o que fez, nomeadamente, Virgílio Ferreira. Primeiro instintivamente combatendo a influência Pessoana só para mais tarde a aceitar plenamente na sua própria obra. A autora debruça-se sobre  a ligação entre os dois autores, que muitas vezes parece estabelecer-se apenas na continuidade do que seria a "dor de pensar", uma atitude eminentemente existencialista e eminentemente Pessoana. É certo que Pessoa desbrava de certa forma esse caminho, mas é menos claro porque é que os autores dos anos 50-60 não são já, claramente, influenciados pelas correntes francesas e necessariamente pela obra de Pessoa enquanto precursor "a derrubar" ou a "continuar". A questão é certamente interessante e a hipótese de Pessoa enquanto autor nascente de um existencialismo que precede o existencialismo Francês.

http://blog.umfernandopessoa.com

O desassossego de Vergílio Ferreira em torno do fingimento poético pessoano e do culto exacerbado da crítica relativamente à geração de Orpheu é a procura consciente de desobstrução de um espaço no sistema literário, do qual resulta inevitavelmente a inclusão do romancista na bibliografia crítica do seu predecessor. A possibilidade que se coloca com este ensaio é a de que, ainda que inicialmente formulando uma discordância, o processo de leitura crítica da obra de Pessoa tenha permitido uma leitura dissemelhante e, progressivamente, mais alargada da obra do seu predecessor e tenha proporcionado um longo processo de maturação dos mecanismos de escrita vergiliana.

http://www.wook.pt

Interrogar o que é humano...



"Dostoievski escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe , fica o homem, por conseguinte , abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos actos e que por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão. O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há-de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa portanto que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: «O homem é o futuro do homem.» É perfeitamente exacto. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa."

Vergílio Ferreira, in 'O Existencialismo é um Humanismo' 

Citando Vergílio Ferreira, escutar uma pessoa que dedicou parte de sua vida a interrogar o que é humano...


" «perseguido até ao fim, acho o mar». Este verso resume o meu objectivo. Achar o mar como um símbolo, como uma metáfora dessa alegria, que é a alegria da pacificação, da eterni­dade, da plenitude, da juventude plena. "

"Eu quis sempre que os títulos dos meus livros tivessem alguma coisa de si próprios, um certo valor estético. Não me interessam os títulos puramente designativos, como o rótulo de um frasco. Quero que o titulo seja em si mesmo um sinal e um valor estético e poético. Que fosse uma abertura, um começo de um poema."

"Cresci eu todo. Em mim cresceu tudo. Penso, de qualquer modo, que aquilo que mais cresceu em mim foi o carácter de adulto."

" Em certa medida, e eu não gosto nada da expressão (literato português), vejo-me um pouco como um marginal. Sou um marginal e não me sinto mal por isso."

" Há coisas a mais no mundo para podermos fixar-nos apenas num universo tão pequeno como é o universo do livro. Aquilo que eu pretendi, e que penso ter conseguido, em certa medida, era transmitir uma dada ideia do mundo e das inquietações que o mundo suscitava através do romance."

" Os romances que escrevi foram, de alguma maneira, espelhos de outra coisa que passava por eles. A vida, por exemplo."

"A vida tem a sua significação máxima nela própria e em nada do que a excede. Portanto, a vida é um valor maior. É um absoluto. Foi esta a minha principal obsessão, aquela de que fui colhendo outras obsessões secundárias. Como sabe, as obsessões secundárias são mais importantes, às vezes, que as obsessões chamadas principais..."

" À medida que eu vou chegando ao fim (tenho uma carga de anos...), vou guardando silêncio. Creio que a natureza se encarrega de me ir organizando a maneira de ser e de sentir para me harmonizar com a proximidade da morte. Da morte real."

" Nós vemos bem aquilo que não vemos, sobretudo — e o passado é aquilo que nós ve­mos menos. Aquilo que está mais perto dos olhos são os próprios olhos e nós nunca os vemos."

"Os meus livros são, fundamentalmente, formas de viver o passado sem o magoar, sem o ferir. Detesto ferir."

"Há em nós um segredo que nós mesmos não sabemos."

“Entender. Porquê a obsessão de ter de haver uma resposta, apenas porque houve uma pergunta? 
Todo o entender é no impossível que tem o seu limite. Mas o impossível é a medida do homem e da sua 
vocação. Aí sou. Aí estou.” 

“As coisas são o que está aí sem mais significação. Mas o aparecimento do homem trouxe com 
ele a fatalidade do como e porquê. Assim ele inventou o mistério e levou o resto da vida a tentar explicá-
lo. E é essa obsessão de explicar que transmite aos que vierem depois dele. É uma  obsessão absurda.” 

"Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o 'saber' 
e o 'ver'. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde 
está a 'aparição'. (...) O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se 
lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio." 

"o melhor da vida é o seu impossível (...). Mas o impossível foi o que sempre mais me fascinou." (169-70).

"A arte é silêncio, nós é que podemos 'discursar' sobre esse silêncio." 

"Deus foi feito à sua [do homem] semelhança e por isso lhe conferiu o dom da criação." Por isso, mesmo numa situação pós-apocalíptica, a arte sobreviveria"

" As respostas vêm da sacristia, do confessionário, do partido. O problema não é esse. É que essas questões não são perguntas, são interrogações e as interrogações não têm resposta. Ou tem-na numa religião."