quinta-feira, 28 de junho de 2012

Apenas Homens.


" Tinha olhos bons, o velho. Um pouco amachucados da velhice, mas bons. E Pedro gostava dele. Ninguém tinha dado conta do roubo a não ser ele, porque as pessoas, como tinham de trabalhar, quando era a altura de as estrelas acordarem, era também a altura de elas estarem a dor­mir. E mesmo que não estivessem ainda a dormir, não tinham tempo de reparar nas estrelas, porque tinham de reparar noutras coisas. Mas o velho não podia já trabalhar e também não tinha sono. De maneira que, para ir passando a noite, que levava mais tempo a passar do que o dia, gostava às vezes de se pôr a olhar as estrelas. E foi assim que deu conta do roubo. É claro que ninguém gosta de que lhe limpem o que é seu. Mas, a bem dizer, a vida era tanta, que estrela a mais ou estrela a menos pouca diferença fazia." Estrela, em Apenas Homens. Vergílio Ferreira.


«Apenas Homens» é uma colectânia de contos de Vergílio Ferreira que integra contos significativos das várias fases da escrita de ficção da carreira literária deste consagrado autor. Com maior preponderância de contos da fase de escrita neo-realista, encontram-se os contos:

«O Encontro»
O Engenheiro da cidade que tem que viver uma temporada no campo, em trabalho, e é vítima da população de uma aldeia pelo facto de ser da cidade.

«Saturno»
O condenado à morte que se auto-transformou em mártir para servir de exemplo ao próprio filho, como prova de que afinal o seu filho segue as mesmas convicções, ainda que para isso tenha que odiar para sempre o pai.

«Apenas Homens»
Um cauteleiro sem partes dos braços e partes de pernas, gozado e enxovalhado por toda a população de uma aldeia, mesmo quando é possuidor de algum dinheiro por bondade de um cliente a quem lhe saiu o prémio.

«Praia»
A rapariga que niguém quer, devido aos problemas de saúde que tem, mas que todos os anos, na praia, sonha por um ano seguinte onde há-de encontrar um homem que a ame.

«O Sexto Filho»
Numa família pobre, do campo, nasce o sexto filho. O pai, como forma de tentar ter mais alguns dividendos, deixa que ele fique coxo para o resto da sua vida - ele destaca-se, sim, mas esse seu destaque será também fatal para o pai.

«Linha Quebrada»
Numa nação qualquer, resolve-se acabar com a cultura do vinho, passando-se a uma cultura da água. Geram-se paradoxos sobre paradoxos, sociais e políticos, e em grande paradoxo acaba a história. Sintomático de qualquer tipo de proibição imposta numa sociedade.

«A Galinha»
Mais uma história exemplar sobre a sociedade, que simboliza o quão fútil pode ser um motivo desde que dê azo ao desabafo de todo o ódio, rancor e mesquinhez que se criam em todos os meios pequenos, mais uma vez numa pequena aldeia. História macabra, onde depois de muitos mortos e feridos, o móbil mórbido de tudo ainda assim subsiste.

«Fado Corrido»
Orfão de pai e mãe ao Deus dará, de tombo em tombo encontra o seu destino natural, numa rixa de taberna.

Além destes contos, temos o que podemos chamar contos fantásticos, ou até, contos da fase pré-existencialista da escrita de Vergílio Ferreira:

«O Fantasma»
Sozinho num café, um homem inventa mentalmente mil e uma conjecturas acerca de outro homem que está sentado noutra mesa a alguns metros dele e que ele julga que o está a observar e a julgar.

«A Estrela»
O melhor e mais carismático de todos os contos deste livro, é uma história particularmente comovente e simbólica de um rapazinho que escolheu uma estrela do céu como sendo sua e a foi buscar. Quando a população da aldeia deu por isso, foi um alvoroço danado, dando por falta de algo de que nunca sentiu falta, e que rapidamente esqueceu quando a estrela foi reposta no sítio. Mas a que preço... cada um tem a sua estrela, e se esta não existe, porque não criá-la?

«O Imaginário»
Outro conto no género fantástico sobre um rapazinho aprendiz de escultor das peças mais pirosas e popularuchas que se faziam em Portugal, cujo mestre tinha um com ele um pacto muito estranho, mesmo depois de morto...

«A Visita»
O filho pródigo vem de visita curta aos pais, ao fim de bastante tempo, mas há alguém que anda atrás dele, e que bate à porta várias vezes enquanto ele está a tomar a refeição com os pais. Instala-se o pânico e ele refugia-se por cima de um armário...

Ainda, a começar e a terminar este livro de contos, encontram-se dois contos em que o estilo de escrita introspectiva e existencialista presente na maioria dos seus romances é bem visível:

«Adeus»
Numa relação entre duas pessoas, por mais que tudo indique que até poderia dar certo, no fundo de cada um há o sentimento de que algo está errado.

«Carta»
Alguém volta à casa onde foi imensamente feliz na infância, já depois do falecimento dos pais, e aí redescobre a paz espiritual que os seus pais tinham e que lhe passaram como testemunho surdo da principal razão de toda a existência humana.


Site de Referência:
http://www.citador.pt

sábado, 9 de junho de 2012

Nítido Nulo.






"Queimai os livros todos, porque a verdade ainda não foi escrita e dos novos ignorantes é o reino dos céus. Se vos disserem que há uma Lei - não! Perguntai-lhes quem é que fez a Lei e desobedecei, que dos desobedientes é a glória eterna". (Nítido Nulo)

A interrogação que Vergílio faz da vida e da morte, do sentir, da luta, da família, de Deus, do destino, do corpo. Muitas das suas questões rodeiam a importância do corpo, direta ou indiretamente. Porque o corpo é a grande (senão a única) ligação do «Eu» à existência. Mas não há respostas. Só grandes interrogações. Nítido Nulo é uma obra com grande vigor.Um homem, encarcerado, aguarda a execução da sentença de morte a que foi condenado. Da sua cela avista, através das grades brancas de uma janela ínfima, uma praia e o mar até ao fundo do horizonte. Do amanhecer ao anoitecer, através da vida que corre nos elementos da natureza da praia deserta, Jorge vai desfolhando momentos de uma vida pautada por uma não aceitação de todas as regras morais, sociais e políticas do meio em que viveu. Constante crítico de todas as restrições impostas pela sociedade, ainda novo se apercebe que a sua voz não será ouvida e que será condenado a um final infeliz, premonitório pelos exemplos reais e brutais a que assistiu na sua infância. O relato dos vários episódios da sua vida intercalam-se, num monólogo em que contrastam as observações das coisas simples da natureza (a praia, o mar) e da vida (o pequeno Lúcio), e os diálogos e reflexões complexas e densas frutos do crescente descontentamento com o regime político que, personificadas no inteligente Teófilo, o levam a uma derrota abissal no confronto entre uma verdade que, embora podre, existe e fundamenta-se, e uma outra que se caracteriza pelo renegar de qualquer limite à existência. Este é o grande calcanhar de aquiles de Jorge que, confrontando-se várias vezes com o próprio Vergílio Ferreira, o acusa de ser demasiado humano face a um mundo que, por se caracterizar dessa mesma forma, se deixa levar por meia dúzia de homens e ideias pobres, e não procura a sua verdadeira libertação numa extrapolação do ser que derrube todos os limites impostos. Presa do seu próprio pensamento, perdido na extrema nitidez da sua visão da vida que torna tudo nulo, Jorge aceita seu destino limpando tudo o que ainda o possa ligar a uma vida cujos momentos mais altos foram os mais simples, e, por isso, os mais verdadeiros. Pronto para morrer, após um julgamento onde defende que a verdade do homem é muito maior que a sua imagem, enfrenta em paz um pelotão de fuzilamento que previamente abate o cão da praia que, além de Lúcio, falecido ainda em plena inocência, era a outra referência usada por Jorge para sustentar a existência de seres da natureza vítimas dos preconceitos e maldade dos homens. Uma leitura difícil caracterizada pelos constantes saltos sem aviso entre o monólogo reflexivo, o presente vivido e ficcionado, e o relato constantemente interrompido de episódios reais do seu passado, este romance apresenta ainda como momentos altos a descrição fiel da sociedade portuguesa durante o regime Salazarista (sem nunca o referir diretamente), onde, sem se comprometer demasiado na crítica à mesma, Vergílio Ferreira usa, inteligentemente, o próprio narrador que faz críticas ao escritor, por o considerar demasiado brando e sentimental; por outro lado, a excelente construção do personagem Teófilo, defensor do regime mas inteligente argumentador de uma verdade que lucidamente defende contra todas as evidências de uma verdade maior mas que não se sustenta. Nítido Nulo é quase um esforço desumano, um livro tirado a ferros do íntimo do escritor. A vontade era de deixar de escrever ficção, e desde Alegria Breve (1965) que não publicava um romance. Aliás, por volta da altura em que o termina, Vergílio Ferreira dizia que escreveria mais um e pronto. Porque Nítido Nulo é violento. Há violência emocional e física expressa em palavras e ações. Depois de uma ação revolucionária, Jorge  diz: "Desço a ver a extensão da minha força. Do crânio do polícia saltam várias molas que bamboleiam lentas no ar. Palpo-o todo nas articulações destruídas. Olho as mãos, tenho-as todas cheias de óleo". Vergílio Ferreira anota no seu diário dia 29 de Novembro de 1969, dias depois de terminar o livro: "A propósito: acabei o romance no dia 27. Nem registei o facto. Por distracção. Porque foi um acontecimento. Nunca suei tanto. Deve ter nódoas o texto. Ainda não verifiquei. Mas deve ter. As nódoas do suor". Há uma frase em Nítido Nulo que poderia dar o tom ideal para a leitura deste livro: "Dizer não é abrir um espaço para o homem se pôr de pé. Dizer não". 


Site de referência:
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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Virá sol?



"O silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me nos ossos. É o silêncio do mundo, da minha condição. [...] Foi fácil liquidar os deuses e semideuses de todos os meus sonhos, de toda a minha inquietação. Mas ao fim de todas as mortes, nos limites do silêncio, há um fantasma sem nome, oblíqua presença de nada. Se eu pudesse dar-te um nome a ti, quê? quem? só assim te mataria talvez. Um nome,  rede invisível, irreal prisão de sons breves. Mas não há um nome para ti. Absurda invenção do homem, espectro instantâneo.Subitamente um indício, um aviso. [...] Vem a voz desde a caverna e do mito, desde o olhar grosso e animal. Em sucessivos nomes se calou, por que falar ainda? [...] A terra é estéril e virgem, é a hora do recomeço perfeito. E todavia às vezes hesito: quem te garante? Entregarás, ao teu filho, o silêncio total. Mas quem te garante que ele não vai errar outra vez? Quem te garante que a voz se calará com a tua voz? Como saber que a voz  não se erguerá da própria terra?" (Alegria Breve)


O romance Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, publicado em 1965, apresenta um narrador que expõe suas percepções presentes e suas sensações referentes à memória do tempo em que a aldeia, lugar onde vive, ainda era povoada. A história é muito singela: uma aldeia é explorada por suas minas de volfrâmio; esgotado o minério, o lugar é abandonado. Mas um único habitante resiste, Jaime Faria, que vai recordar, num futuro, fatos e sensações passadas referentes à sua experiência de vida naquele lugar. A simplicidade do enredo é contrastada com a complexidade da personagem, o que se caracteriza como uma tendência recorrente nos romance modernos. O autor moderno ocupa-se com a vida intricada da personagem, e, para apresentar essa complicada experiência interior, o romancista deixa em segundo plano o enredo, justamente porque quer dar ênfase à personagem. Mas a complexidade, nessa obra, não é apenas da personagem; as preocupações ensaísticas do autor, como também as estruturas ficcionais apresentam-se complexas. Vergílio Ferreira emprega, nessa narrativa, recursos próprios da linguagem poética, especificamente os do texto lírico, ou seja, há a preocupação artística na elaboração do nível sonoro da frase, bem como a presença de mitos e símbolos. A estrutura é composta de fragmentos, como num mosaico em que tudo é presentificado na memória do narrador. Embora não nomeada, a aldeia, tal como é mencionada em Alegria breve, refere-se, em um primeiro momento, a um lugar particularizado: uma região de Portugal em que minas de volfrâmio são exploradas. Este é o lugar exterior que dispõe o inominado espaço interior do narrador Jaime Faria. A aldeia é o espaço físico que sugere ao narrador, Jaime, dimensões espaciais interiores que dificilmente podem ser nomeadas. Uma aldeia vazia é o espaço onde se encontra o narrador. Nesse espaço vazio, de proporções ampliadas (pois a aldeia se insere em uma vasta região abandonada), ele percebe sua imensidão íntima proporcionada pela dimensão do exterior, a aldeia. Não há convivência social no presente momento em que ele se recorda de situações passadas e estabelece perspectivas futuras. Por isso, estando só em um lugar privilegiado, uma aldeia com dois montes imponentes, o sol, a neve e o vento, ele pode pensar na condição de seu ser, ou na inquietação de seu ser, de sua existência. Os recursos poéticos empregados em Alegria breve buscam constituir uma linguagem que supra as deficiências dos conceitos, que não atingem a comunhão do homem com o verbo. Ao mesmo tempo que o verbo é inerente ao homem, também é impreciso, uma vez que a linguagem não consegue expressar toda a complexidade da experiência humana. Assim, deixando o pensamento divagar pela corrente rítmica, o autor cria imagens para exprimir o que, na lógica convencional, é inexprimível. Vergílio Ferreira, deixando fluir o idioma, confere à frase imagens e sentidos que são estabelecidos pelo próprio ritmo do pensamento. A prosa se poetiza numa cadência de maré que vai e vem, que cai e se levanta no fluxo do pensamento: "Um oco de silêncio escava-se vastamente no vazio do universo. É um silêncio opaco como o de uma cripta saturada de uma compressão de ecos — virá sol? Uma nódoa luminosa repassa como gordura, lá ao alto, a pasta grossa das nuvens. A luz íntima da neve começa a vir à superfície, imperceptivelmente cintila. Neve instantânea, neve intacta, só eu a uso. Filamentos de seda delimitam o desenho das coisas. Fímbria, timbre, limite — que inverossímeis palavras? que finas titilações? tinidos da memória, ouço-os. A neve estende aos meus olhos a esterilidade de tudo, o início limpo. Gravo nela a minhaanimalidade quente e escura" (Alegria Breve). Jaime precisa dizer a si mesmo suas reflexões acerca dos sentidos da vida. É dessa maneira que vai buscando novos significados para sua existência. Esse sentido novo é percebido quando proferido pela linguagem poética, que, somente ela, pode expressar a complexidade da condição humana. Em Alegria breve, um dos muitos símbolos, que fazem expandir a constelação imagética, são:  o silêncio, o sol e a luz. Segundo o dicionário de símbolos o silêncio é um prelúdio de abertura à revelação; [...] abre uma passagem. Segundo as tradições, houve um silêncio antes da criação, haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos; dá às coisas grandeza e majestade; marca o progresso. O silêncio, dizem as regras monásticas, é uma grande cerimônia. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2000, p.833-834). Transpondo a definição para o romance, o silêncio é a revelação de uma percepção nova, de quem está sozinho e compreende a grandeza do ser humano. É a força do pensamento para a realização do novo, por meio de uma simbiose com o espaço, ou seja, com a terra, com o sol, com a luz, com a alvura da neve... O silêncio prepara o homem para a percepção de toda a grandeza da vida. Uma vez inserido num espaço onde não haja silêncio, não é possível ao sujeito tal percepção, pois os ruídos urbanos, por exemplo, ocultam os pequenos detalhes inerentes ao silêncio que revela a “imensidão interior” do narrador. Desse modo, essa preparação do silêncio proporcionado pelo espaço exterior é uma cerimônia de iniciação do indivíduo para a compreensão de seu espaço interior. Outro símbolo relacionado ao romance é o sol, que na iconografia cristã, é considerado o símbolo da imortalidade e da ressurreição, ou seja, do eterno renascimento para a vida. A pergunta feita por Jaime é: "virá sol?”, repetida em vários outros trechos, sugere que ele acredita, ou pelo menos precisa acreditar, na necessidade da recriação da própria vida a partir de uma linguagem que, ao renomear tudo, crie um mundo novo. Assim como um cristo ateu, ele é o seu próprio salvador, o designado por si mesmo, ele está só, não há alguém que possa fazê-lo para reordenar o mundo. Ao longo da obra, a luz do sol, com sua presença reiterada, simboliza a renovação da vida. A luz é conhecimento. Segundo São João (1, 9), a luz primordial identifica-se com o verbo; o que exprime de certo modo a irradiação do sol espiritual que é o verdadeiro coração do mundo. Em um determinado momento Jaime exclama: "“A luz íntima da neve [...], só eu a uso”. Entendemos que a luz nos sugere, juntamente com o silêncio, “o primeiro aspecto do mundo informe”, do mundo que poderá recriar-se a partir da luz que é revelação, intuição do ser a respeito da amplitude da sua própria existência. O silêncio, associado à luz do sol e à luz branca da neve, que revela ao nosso narrador toda a possibilidade de recriação da vida por meio da palavra. Esse narrador, deus de si mesmo, pode, com esses elementos, fazer ressurgir o sentido do mundo e com ele o da vida

Referências Bibliográficas:

BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad.: Antonio de Padua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
BIEDERMANN, H. Dicionário ilustrado de símbolos. Trad.: Glória Paschoal de
Camargo. São Paulo: Melhoramentos, 1993.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad.: Vera da Costa
e Silva et al. 15.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
FERREIRA, V. Alegria breve [1965]. São Paulo: Editora Verbo, 1972.

ALEGRIA BREVE:








"Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser e a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçada a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais. Conheci o meu corpo em que apareci. É curioso um corpo. tem mãos, pés, nove buracos. Meteram-me nele, nunca mais o pude despir, como um cão à cor do pêlo que lhe calhou. É um corpo grande, um metro e oitenta e tal. É o meu corpo. Calhou-me. Movo as mãos, os pés, e é como se fossem meus e não fossem. É extraordinário, fantástico, um corpo. Com ele e nele tomei posse e conhecimento de coisas espantosas. Não seria uma pena não ter nascido? Ficava sem saber. Dirás tu: de que te serve se amanhã já não sabes? É certo. Mas agora sei. De que servem os prazeres que já tive e nunca mais poderei ter? Não servem de nada, serviram." (Alegria Breve)


ALEGRIA BREVE:

"Alegria Breve" é a vida, e também a morte, o envelhecimento, a solidão, as experiências passadas, o que podia ter sido mas não chegou a ser, o corpo e a alma, o mundo que nunca foi nosso, apenas emprestado e retirado a qualquer instante. Em 1965, quando saiu a primeira edição de Alegria Breve, alguns críticos vaticinaram que se tratava de um romance de solidão que fechava todo um ciclo ficcional iniciado com Mudança (1949) e que dificilmente Vergílio Ferreira reencontraria outros caminhos de ficção para prosseguir na sua aventura literária. E isso, claro, não aconteceu. Pelo contrário, pôde ainda publicar alguns dos melhores romances da moderna prosa portuguesa: Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Na Tua Face (1994) ou ainda Cartas a Sandra (1996), como despedida final aos oitenta anos e por desejar entrar no paraíso com esse belíssimo romance debaixo do braço. A ação narrativa de Alegria Breve passa-se em dois planos: o real e o irreal. Na releitura há quarenta e sete anos de distância, dizemos de novo que é uma história inteiramente imaginada, não situada num tempo e espaço definidos, e o problema central é exatamente o que ao homem diz ter ele de assumir, em plena consciência, a visão perfeita do mundo em que vive, com o que nele existe de bom e de mau, de alegria e de desgraça, de ambição e de derrota, de vida e de morte. Mas a vida tem  a sua natural continuidade e o homem prolonga-se na existência de um filho e este noutro filho que há de ser seu e assim na eternidade do tempo. O filho do homem  é a imagem real da vida, da sabedoria e da experiência que herdamos de outros homens. Tudo se desenrola no melhor dos mundos possíveis, pelo menos na aparência. O que distingue ou atraiçoa esta verdade tão simples é que cada homem traz consigo a certeza de um  dia ter de morrer, estar cansado, não ter já razões para nada... E esta  visão que para alguns conduz ao desespero e à angústia de viver é, afinal, a lucidez de uma consciência atenta e capaz de tudo, tentando reconstruir tudo desde as origens, desde a primeira palavra. Mas existe um aspecto bem importante neste romance, talvez tão relevante como o que nele se discute: é o que se relaciona claramente com a posição de Vergílio Ferreira que, neste romance, reflete o seu cansaço, um cansaço de homem e de artista, para quem este nosso tempo não é de crise nem de liquidação. O reflexo desse cansaço manifesta-se ao longo do livro, quase sempre na confissão de: "estás velho!, estás cansado!". Palavras de choque que avisam de que se trata sobretudo de um romance da fadiga de um escritor e de um homem que morre em solidão porque a vida já não satisfaz as suas exigências. Através desse cansaço da vida (ou saturação num gênero literário em plena crise ), o escritor cansa-se também da arte. Por isso, Alegria Breve é escrito em supetões, frases inacabadas, imagens secas  que se repetem e a sombra que aparece é ainda a de um mundo coado de neve que reflete ser o símbolo deste romance: a brancura (pureza) de uma alma que se perde e se conquista ao longo de Alegria Breve e foi depois retomada no romance Nítido Nulo (1971). Romance plenamente realizado, mesmo apesar de querer sugerir o que há de instável e de ambíguo no mundo moderno, acentuando ainda, como em Estrela Polar, o desencontro das personagens com a realidade e entre si próprias, este romance de Vergílio Ferreira fecha um ciclo que se podia afirmar ter atingido o ponto-limite da sua criação literária. Alegria Breve refletiu, sim, na altura o cansaço de um romancista que se cansou de pôr em romance o que parecia ser impossível: a verdade do próprio mundo original, o absurdo da morte, a procura de um absoluto, ter uma explicação para tudo, ou a ideia de que Deus morreu.

SITE DE REFERÊNCIA:
 http://www.apagina.pt


quinta-feira, 7 de junho de 2012

APELO DA NOITE.





"Foi terrível saber que não era Deus, saber que o meu sangue e a minha carne e o meu riso tinham sido feitos por outrem. (...)... O Luciano e o Romão friamente assassinos, provaram-me por a+b que quem cria e recria o artista são os outros. Foi terrível saber que os meus versos, as minhas ideias, os meus gestos tinha, o outro por pai e que eu, que podia ser um outro para os outros não o podia ser para mim". 
(Apelo da noite)

APELO DA NOITE: Viagem sem regresso entre o pensar e o agir.

A problematização de natureza política, que se verifica em Mudança, tem continuidade e aprofundamento em Apelo da noite, romance que Vergílio Ferreira termina de escrever em 1954 mas que só publica em 1963, registrando-se, entre um e outro, o aparecimento de Manhã submersa (1954), Aparição (1959), Cântico final (1960) e Estrela polar (1962). Os motivos desse tão longo hiato entre a conclusão do romance e a sua publicação foram de foro íntimo do escritor. Não obstante, alguns críticos arriscaram opiniões, caso, por exemplo, de Aniceta de Mendonça, para quem Apelo da noite é um romance menor cuja publicação só se justificou pelo “interesse editorial”. Diz ela que “Apelo da noite é um livro deslocado na obra de Vergílio Ferreira, livro que se beneficiaria do êxito de Aparição e Estrela polar” e cuja publicação teria sido movida por visíveis ‘intuitos comerciais’. Ocorre, porém, que Apelo da noite  é exatamente o romance que realiza a passagem de Mudança para Cântico final, sendo necessário considerar, também, nessa passagem, o romance de formação que é  Manhã submersa, que sugere um evidente parentesco com Vagão “J”, quando, em essência, já nada mais tem a ver com esse romance do passado do escritor. Apelo da noite seria, portanto, um elo relevante na transição de um modo de romance em que se mesclam o social e o existencial e um passo a mais na definição deste caminho que caracterizaria o sentido de conjunto da obra do escritor. E é por isso que não pode, este livro, ser considerado dispensável na obra de Vergílio Ferreira. Não é difícil perceber na figura de Adriano – protagonista do romance – a fusão do meditativo, solitário e angustiado Carlos Bruno com o lúcido e pragmático ativista político Pedro, seu meio-irmão, ambos personagens de Mudança. O “vício” de ler e de pensar em que Carlos mergulha a partir da “crise” e decerto em conseqüência do desgaste de todas as suas crenças, valores e relações humanas, é em Adriano uma condição visceral. A clandestinidade em que Pedro se lança na sua adesão à luta contra um governo totalitário e que só transversalmente é percebida na cena do seu aparecimento na aldeia, quase ao final do romance, é destacada em Adriano mais que em qualquer outra figura do grupo de intelectuais ativistas clandestinos do qual ele participa, em Lisboa. Adriano é um intelectual que pensa a política, a vida, a morte, a arte. Que oscila – até à tomada de decisão – entre a Idéia e a Ação, o pensamento e a prática, a inércia e o heroísmo. Apelo da noite propõe o regresso a alguns temas anteriores, a incursão por alguns novos, a proposição de problemas ainda não enfrentados. Mais do que em Mudança – e a partir do confronto Idéia/Ação –, é o conflito entre o absoluto e o relativo que, filosoficamente, ocupa o relevante lugar do tema em Apelo da noite. “Ler absoluto no relativo” – diz o próprio Vergílio Ferreira, “fórmula útil para as verdades indiferentes; para as outras é apenas uma fórmula de prudência vã. Porque, se previne de que a verdade de hoje seja o erro de amanhã, esquece que enquanto se ‘lê’ absoluto, o absoluto se não ‘lê’: 'é'.  Absoluto/relativo, idéia/ação, história/transcendência, arte/política, arte/ação, vida/morte, razão/loucura, ação/destino, justiça/injustiça... São alguns dos conflitos postos em questão pelo romance, chamados constantemente ao debate pelo grupo de personagens-artistas (romancistas, poetas, pintores), professores, jornalistas, editores, ativistas culturais. O grupo, de que fazem parte Adriano Mendonça, Gabriel, Fernando Aires, Décio Ramos, Vitor, Teles, Torres, Rute, constitui, ficcionalmente, uma espécie de célula de resistência ao governo salazarista. . De início é de natureza ideológico-cultural, com redação e publicação de artigos, programas, plataformas, intervenções em jornais, realização de conferências – portanto no plano do pensamento ou da idéia. Adriano acabará por se envolver na fuga de dois presos políticos de um presídio, que, sob o seu comando, são transportados para um esconderijo numa aldeia serrana da Beira Alta. O episódio da fuga e o seu desenlace, fatal para Adriano, constitui a ação (política) como contraponto da idéia. A representação da intelectualidade no grupo de personagens propicia o aspecto ensaístico do romance. Porventura demasiado sobrecarregado de matéria ensaística ou ideológico-filosófica,  o romance,enquanto ficção, ressente-se desse excesso. Há teorização em demasia sobre política, sobre arte, sobre filosofia, sobre história – o que de alguma forma prejudica a fluência do romance como tal –, e também sobre a vida e sobre a morte e sobre o intensamente questionado problema do suicídio. O direcionamento existencial é mais que evidente, uma vez que estes são temas básicos da literatura existencialista (onde constituíram tradição), de uma arte literária, sobretudo romanesca, que se destinou à representação ficcional de algumas idéias ou questões fundamentais do existencialismo. A busca do absoluto (que nenhum dos personagens pode encontrar na transcendência) ou de um valor que o valha, seja a arte, seja a ação, a aventura, o heroísmo ou um gesto decisivo numa vida, são igualmente traços de grande significado existencial. Podem ser o objetivo de uma vida ou a justificativa de uma existência. Para Adriano Mendonça, possuem essa dupla significação. Adriano julgara perdidas as razões para a vida quando atingido pela violência da morte. Primeiro a irmã, Lídia, repentinamente morta em plena juventude: “visitava-o a morte agora pela primeira vez, o seu absurdo, a sua violência como um estampido”, depois o pai, carregando a morte anunciada por um câncer: – [...]. É certo que se trata de um nódulo pequeno. Em todo o caso, provisoriamente, admitamos que é um cancro. “Um cancro” – pensou Adriano terrivelmente. Mas quando fitou o pai, encontrou nele dois olhos calmos e quase compadecidos. Tudo se reduzia a um pequeno nódulo – insistia ainda o médico. – Nenhuma razão  pois para alarmes. Metástase evidente não havia. Em todo o caso...  [...]. “Um cancro” – pensava ainda Adriano. “Estará certa essa doença para ti, pobre velho? Que tu possas ser forte, ainda que apodrecendo. Como no teu sonho de sempre...” (Apelo da Noite, p. 84-85). A doença do pai vai arrastar-se lentamente, mas Adriano sabe-se cada vez mais condenado à morte – à dos outros e à própria – e portanto mais só e mais carente de objetivos que justificassem a sua breve passagem pela vida. Faz então quase um inventário das mortes à sua volta: Lídia morrera; recorda vários professores que tivera em Coimbra, mortos no decorrer do curso. Também Rodrigues, o estudante que “plantara a vida no sonho”, mas “o sonho apodrecera” [...] . Queria que o sonho durasse. Segurar o instante perdido – as gerações novas chegavam, partiam, ele ficava ainda. Uma bala suicida sagrou-o enfim jovem para sempre.” (p. 25). Também Vitor morre, e Rute, poetisa e vagamente amante de Adriano, suicida-se, repetindo o gesto de uma velha tia-avó, ou bisavó, só conhecida na imagem de uma fotografia antiga e que se matara aos vinte anos. “Levanto os olhos, não vejo senão morte” (p. 208). “– Trago a morte em mim como uma doença. Tudo morre à minha volta. Trago a peste comigo...” (p.175). Este lamento de Adriano extravasado no momento do suicídio de Rute, não só o conscientiza do tamanho da sua solidão, como de alguma forma ecoará, como um lamento trágico de todos os homens, em outros momentos da obra de Vergílio Ferreira. O suicídio passa a ser tema de reflexão freqüente, em Apelo da noite. Também o tinha sido na literatura existencialista, de onde visivelmente decorre para o romance de Vergílio Ferreira. É o tema de abertura de O mito de Sísifo, de Camus, no ensaio “Um raciocínio absurdo”: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida". Passará também a ser um problema entre os muitos que compõem a discussão permanente em que Adriano Mendonça se debate. Ele constata o suicídio praticado por um estudante que desejava ser jovem para sempre (e assim “o sagrou uma bala suicida”), constata-o ainda mais próximo de si, praticado por uma mulher jovem, que ele talvez amasse mas a quem dá argumentos para pôr fim à vida porque a existência é absurda e não vale a pena viver, e descobre que o suicídio pode ser “disfarçado” em ação, em “ato de heroísmo”. É este que de algum modo decide praticar, ou assume o risco de que ele “aconteça”, quando aceita participar da ação planejada pelo grupo clandestino para dar fuga a dois presos políticos. É nessa ação que Adriano vai empenhar o que lhe resta de vida, depois de a ter empenhado em pensar a Arte, a política, a história, a filosofia, a vida, a morte... Adriano substituirá a reflexão pela ação. Depois do desmantelamento da Frente da Cultura pela polícia, da prisão de alguns dos companheiros que a integravam, da traição ou do “amolecimento” de alguns deles culminando com a prisão de Aires, do suicídio de Sílvio que não suportou as conseqüências de haver traído... Depois de tudo isso e fascinado pelo suicídio que parece conferir perfeição ao imperfeito, Adriano  participará da execução do plano de fuga dos dois presos políticos. É então que começa a sua viagem sem regresso. Como que ao irresistível apelo da noite, Adriano guia o velho carro Packard do pai, noite adentro, de Lisboa para o interior do país, para a Beira, para a montanha onde seriam escondidos os fugitivos. Teria ali a oportunidade para viver o seu ato de heroísmo, a ação que lhe sagraria a justificativa da vida. Seguidos pela polícia sem que o soubessem e cercados à noite na casa onde se refugiaram, Adriano resistiria sozinho ao fogo aberto pelos policiais, tentando dar cobertura à fuga dos outros, até ser atingido por uma bala. "Invadia-o uma fraqueza cada vez mais profunda, como se fosse apenas fadiga de estar pensando. E caiu. Nome de Deus, vou morrer! Turvaram-se os olhos, turvaram-se o pensamento. Então, uma fúria estranha, ou uma evidência estranha clamou nele até aos astros submersos: – Glória ao... Viva o...  Glória! Não. Ninguém gritou. Só o silêncio. E uma paz cada vez maior, tão vasta como o céu e a montanha e os sonhos milenários dos homens. A porta. Alguém entrando. Homens escuros de arma apontada. Não. Ninguém. Nada. Nada. ( p. 258). Adriano consegue, finalmente, “resumir a vida numa ação decisiva”, viver (ou morrer) esse instante-limite capaz de fundamentar a existência em grandeza. Praticou, afinal, uma outra forma de suicídio, tentando dar perfeição ao imperfeito, transformar o relativo em absoluto, mudar a idéia em ação. De uma perspectiva realista é bem possível que o desenlace trágico de toda a trajetória existencial de Adriano seja equivocado. Mas é no plano simbólico que tudo isso tem de ser considerado, porque a morte de Adriano, ao invés de um absoluto em si, acaba por mostrar a relatividade da sua ação e do seu heroísmo. É a partir dela que se compreende melhor o significado do poema de Décio Ramos de que um breve fragmento é várias vezes repetido ao longo do romance: “Custa ser homem, Senhor!  Custa sobretudo,  porque é infinita a distância que vai da razão lúcida à paz da consciência” (p. 27). Adriano percorrera essa infinita distância a partir da lucidez do seu pensamento, e alcançou, com a ação em que fez culminar o percurso da existência, a paz interior, tão angustiadamente desejada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


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