quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Tornar-se um gênero é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma realidade de plenas sanções, tabus e prescrições".



"Não é possível assumir um gênero de um momento para o outro. Trata-se de um  projeto laborioso, sutil e estratégico, e quase sempre velado. Tornar-se um gênero é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma realidade de plenas sanções, tabus e prescrições. A escolha de assumir certo tipo de corpo, viver ou usar o corpo de certo modo que as reproduzam e organizem de novo. Menos um ato radical de criação, o gênero é interpretar normas de gênero recebidas de um modo que as reproduzam e organizem de novo. Menos um ato radical de criação, o gênero é um projeto tácito para renovar a história cultural nas nossas próprias condições corpóreas. Não é uma tarefa prescritiva de que devamos nos esforçar para fazer, mas aquela em que estamos nos esforçando sempre, desde o começo".
Judith Butler


Simone de Beauvoir e a condição feminina:


Escritora, filósofa, mulher na vanguarda de muitas idéias e de várias atitudes: é realmente difícil definir ou delimitar a importância de Simone de Beauvoir para nós, mulheres e homens. Simone parece ter conseguido construir seu “projeto” de vida de forma profundamente (e para muitos da época, irritantemente) independente. Escreveu O Segundo Sexo, livro memorável, remarcável, para várias gerações de mulheres. Escrito numa época de dolorosa transição e reconstrução, no pós-guerra da Europa, o livro é um grito de libertação para todas as mulheres e também para a própria Simone. Através dele é que Beauvoir vai se afirmar, de modo definitivo, como pensadora original e testemunha crítica de sua própria época; ela desafia preconceitos e trata de forma aberta e simples temáticas tabu tais como: a sexualidade na infância, a menstruação, o erotismo, o desejo e a iniciação sexual, a religiosidade repressora, a cultura de dominância masculina e machista e a desqualificação cultural da feminilidade, o sexismo na literatura, o defloramento e a brutalidade masculina na relação sexual, a virgindade, o orgasmo, o lesbianismo, a dominação masculina no casamento tradicional, a prostituição, a velhice, o suicídio, entre muitos outros. Muitos fatores e elementos convergiram para a publicação desta obra, neste período. Ter se enamorado e convivido com Jean Paul Sartre  por mais de cinqüenta anos foi uma experiência que, retrospectivamente, podemos considerar como altamente “ambígua”. Se por um lado a convivência foi crucial nos destinos da existência e também nas formas do pensar filosófico para Simone, levando-a a caminhos literários e teóricos que culminaram na criação conjunta da corrente do existencialismo (e a própria autora gostava de definir o “existencialismo” como a filosofia da ambigüidade); por outro, a parceria lhe rendeu dificuldades no reconhecimento público de um pensamento forte, próprio e independente. Apenas recentemente começou-se a tentar identificar a real originalidade da contribuição de Simone de Beauvoir para a filosofia moderna e também para o feminismo. Um dos muitos méritos de Simone de Beauvoir com O Segundo Sexo  foi traduzir para uma linguagem comum, plenamente acessível, simples e com exemplos abundantes, os avanços  da literatura, da psicologia e sobretudo da psicanálise sobre a condição feminina. A autora reescreve assim os próprios limites da teoria social e filosófica, quase que obrigando a estes campos ao frutífero debate com outras áreas, onde o conhecimento caminhava mais rapidamente no sentido da emancipação para a condição feminina. Alguns críticos tendem a analisar que a sua escolha por uma carreira acadêmica – como professora e escritora – deveu-se às muitas dificuldades que assistiu sua família (em especial a sua mãe) passar durante a Primeira Guerra Mundial. Se as vicissitudes das tarefas domésticas desempenhadas pela figura materna num período sombrio financeiramente desempenharam papel na “escolha” de Beauvoir em não se tornar a “dona de casa” tradicional e a “mãe devotada”, este não foi o único vetor determinante de suas decisões polêmicas para aquela época (sobretudo não se casar formalmente e também decidir optar pela não maternidade). O pensamento vigoroso e inquieto, a não acomodação, a insatisfação, a capacidade de recusa e a coragem certamente são ingredientes igualmente fundamentais para entendermos a mulher que Beauvoir veio a “tornar-se”: "Primeiramente, haverá sempre certas diferenças entre homem e mulher; tendo seu erotismo, logo seu mundo sexual, uma figura singular, nada poderá deixar de engendrar nela uma sensualidade, uma sensibilidade singular: suas relações com seu corpo, o corpo do homem, o filho, nunca serão idênticas às que o homem mantém como o seu corpo, o corpo feminino, o filho;  os que tanto falam de “igualdade na diferença” mostrar-se-iam de má-fé em não admitir que possam existir diferenças na igualdade. (...) Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para ele: reconhecendo-se mutuamente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro; a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engendra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: dar, conquistar, unir-se conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a “seção” da humanidade revelará sua significação autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira". Simone de Beauvoir.

Referências Bibliográficas:

BUTLER, Judith. Variações sobre Sexo e Gênero

BEAUVOIR, Simone de.  O Segundo Sexo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo, Ed. Cortez

Site de referência:

http://www.pagu.unicamp.br

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