Sartre e a consciência:
Para Sartre, todo estudo sobre a realidade humana deve ter por princípio a subjetividade, precisamente a consciência – o cogito. No entanto, difere consideravelmente das características apresentadas na origem dessa temática, especificamente no que diz respeito a maneira de como foi estabelecido pelo plano cartesiano. Em Descartes, o cogito corresponde na constatação de uma substância pensante – Eu penso – cuja conseqüência resulta numa subjetividade fechada em si mesma, que pretende estabelecer o domínio do conhecimento humano. Sartre destaca que o Eu penso (cogito) de Descartes, trata-se apenas de uma ação que corresponde a um caráter funcional: “Descartes o havia questionado em seu aspecto funcional: ‘Eu duvido, eu penso’. E, por querer passar sem fio condutor desse aspecto funcional à dialética existencial, caiu no erro substancialista”. Segundo Sartre, Husserl segue o mesmo procedimento permanecendo também numa descrição funcional do cogito, resultando numa simples aparência. Assim, tanto Descartes como Husserl permaneceram numa verdade essencial. A consciência, em Sartre, no eixo da fenomenologia, tem o mesmo sentido descrito no pensamento husserliano: “Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se preferimos, que a consciência não tem ‘conteúdo’”. (Sartre). Esta definição de consciência faz dela uma abertura para o mundo, o que caracteriza, segundo Sartre sua intencionalidade, algo próprio da consciência. “Pela intencionalidade, ela transcende-se a si mesma, ela unifica-se escapando-se”. (SARTRE). Ou seja, a consciência se unifica na medida que ela própria se transcende para alcançar os objetos. Destaca-se que este objeto não é unificado pela consciência, pois na fenomenologia a consciência não assimila o objeto, ela escapa a si rumo ao objeto que também é transcendente. Assim, a consciência apenas desliza sobre o objeto sem aprendê-lo como um conteúdo no seu interior. Neste transcender não há nenhum núcleo que se consolida como suporte para a consciência, nem no seu interior (Descartes), nem por detrás dela (Husserl). Isto significa que a consciência (Para-si) se caracteriza como translúcida e vazia de qualquer habitante, situando para fora de si, numa relação com o mundo dos objetos (Em-si). Esta destituição de um Eu na consciência – temática relatada na obra A Transcendência do Ego – trata-se de uma composição contrária a elaboração pensada pela tradição filosófica e psicológica, que institui de maneira formal ou material esta presença egológica na consciência. Sartre comenta: "Para a maioria dos filósofos, o Ego é um ‘habitante’ da consciência. Alguns afirmam a sua presença formal no seio das Erlebnisse como um princípio vazio de unificação. Outros – psicólogos na maior parte – pensam descobrir a sua presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento da nossa vida psíquica." (SARTRE). Nesta perspectiva, Sartre elabora uma subjetividade, caracterizada por uma consciência aberta, destituída de uma essência interior ou qualquer substância que a defina como alguma coisa. Assim: “O primeiro passo de uma filosofia dever ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência posicional do mundo”.(SARTRE). No pensamento sartreano a consciência aparece descrita em duas instâncias: a consciência não-posicional (pré-reflexiva) e a consciência posicional (reflexiva). O que faz com que a característica marcante da consciência seja ser posicional, devido a sua abertura ao mundo proporcionada pela intencionalidade. Este posicionamento se evidencia sempre frente ao mundo dos objetos – o mundo do Em-si. Isto pressupõe uma consciência não-posicional (pré-reflexiva) de si mesma; pois não podendo colocar-se como objeto de investigação da mesma maneira que faz diante do mundo; a consciência (reflexiva) se volta exclusivamente para os objetos existentes fora dela. Nesta perspectiva, o homem não pode pensar a si mesmo, no sentido clássico do termo – pensar é pensar o ser. Caso isto ocorra, ele depara com o vazio de seu ser. Desta maneira, o homem não pode abarcar seu ser, pelo fato da destituição do ser na consciência.
Para Sartre, em O Ser e o Nada, a constatação do ser da consciência (Para-si) não consiste numa coincidência, que corresponderia na plenitude de ser, como por exemplo, no pensamento de Descartes, cujo resultado implica na definição da consciência como algo fechado em si mesmo. Mas a consciência, no pensamento sartreano, se caracteriza como descompressão do ser, uma fissura causada pelo vazio que a habita; havendo um distanciamento de si. Assim, Sartre caracteriza a consciência como aquilo “que é o que não é e não é o que é” (SARTRE), ou seja, nada. Desta maneira, o cogito estruturado por Sartre não corresponde a uma concentração em volta de si mesmo, pois tal fato resultaria na instauração de uma substancialidade que constituiria a consciência como um centro de opacidade. Porém, para Sartre, o procedimento se realiza de maneira contrária, pois o cogito existe num contínuo transcender a si mesmo, ou seja, para a exterioridade. Este sair para fora de si que não dispensa a subjetividade, no sentido expresso do pensamento sartreano. Sartre admite que a idéia de ser-no-mundo marca uma atitude de suma importância para compreensão da realidade humana, atribuindo a consciência (cogito) um papel considerável nesse procedimento. Isto resulta no fato da consciência ganhar uma dimensão existencial, que não é encontrada em Descartes, para este a consciência está situada na estrutura do conhecimento, tendo uma dimensão essencialista – substancialista. Assim, a definição da consciência sartreana corresponde ao fato de que o foco sobre pensamento deve ceder lugar a experiência existencial. Sartre destaca: “Toda existência consciente e existe como consciência de existir” (SARTRE). Assim, a lei da existência da consciência em Sartre consiste na simples e pura consciência de ter consciência do objeto, uma consciência posicional do mundo. No entanto, caso fosse posicional de si necessitaria de uma outra consciência posicional, que por sua vez precisaria de uma outra... esta de uma outra..., assim sucessivamente num processo que levaria ao infinito – uma consciência de consciência de consciência... Para não cair numa repetição ao infinito, o autor ressalta, como caráter indispensável, a manutenção da instância da consciência não-posicional, enquanto vazia de conteúdo. O que a faz ser transcendente (intencional) e caracterizada de consciência (de) consciência, a marca da subjetividade sartreana. Desta maneira, toda consciência se define como consciência transcendente de um objeto. Este que, por sua vez, também se apresenta como transcendente para a consciência. Tal procedimento corresponde a prova ontológica da existência da consciência para Sartre: “A consciência é consciência de alguma coisa: significa que à transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é. Chamamos isso de prova ontológica” (SARTRE). Nesta perspectiva, não há consciência sem mundo (objeto) e não há mundo sem consciência. O que resulta que, no pensamento sartreano, a consciência aparece simultaneamente com o mundo. Isto porque a consciência transcende a si mesma para aquilo que ela não é – o objeto que está fora dela. A manifestação desse objeto, denominado de fenômeno, se apresenta de maneira única para consciência, não havendo, em ambos, a distinção entre ser e aparecer. O que faz com que a consciência se reconheça como absoluta. Nas palavras de Sartre: "A consciência nada tem de substancial, é pura “aparência”, no sentido de que só existe na medida que aparece. Mas, precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto." (SARTRE). Por esse aspecto, Sartre rompe com a característica principal do substancialismo, o dualismo entre interior e exterior, essência e aparência. Isto se deve pelo fato da consciência como ser que coincide com seu aparecer, sendo um vazio, um Nada de ser, faz com que ela seja uma abertura constituidora do mundo. Este que aparece tal com ele é – um Em-si, enquanto a consciência surge como possibilidade de ser – um Para-si. Outro aspecto que marca o pensamento sartreano consiste na caracterização da consciência como negatividade, que se realiza devido ao fato dela colocar-se em questão, encontrando no seu próprio ser o nada. Para Sartre: “O homem é o ser o qual o nada vem ao mundo” (SARTRE). Dessa maneira, a consciência se constitui como pura negatividade, marcada por um processo de nadificação, que para Sartre consiste na própria interrogação de si. O que nadifica é a abertura da consciência que se posiciona frente ao mundo, pela qual ela não é, como também não é uma identidade tal como se apresenta no mundo. Assim, a consciência surge tendo como objeto um ser que ela não é, enquanto ela mesma é nada. A negatividade corresponde justamente esta destituição de um ser pleno no interior da consciência, e, para Sartre: “(...) a consciência interrogativa que ao introduzir a negatividade no mundo, como libera o nada para que ele venha a ‘cintilar’ sobre as coisas” (SARTRE). A partir da tese da nadificação da consciência, aparece o conceito de liberdade como o ser da consciência, ou seja, a consciência nada mais é do que liberdade. Simplesmente porque o Para-si (consciência) é um nada de ser, um vazio total, pura indeterminação e totalmente livre para criar seu ser, movendo-se pelas próprias possibilidades. Caso contrário, o Para-si não se constituísse pelo nada de ser e fosse algo que é, um ser Em-si, um objeto fechado, opaco, denso, estaria fadado desde sempre e para sempre a um sentido, a uma essência. O que acarretaria que nesse processo a essência precederia a existência. Tal procedimento, se distancia do pensamento sartreano cuja máxima maior consiste que a existência precede a essência. Assim, o homem existe enquanto no núcleo do seu ser há (o) nada, o que remete à uma liberdade: a um fazer-se ser através das escolhas criando uma essência. É através do nada na consciência que a liberdade invade o ser humano, fazendo dela (liberdade) o ser da consciência. Isto resulta que a realidade humana seja caracterizada como consciência de liberdade. No entanto, a liberdade, para Sartre, não significa uma propriedade que pertença à essência do ser humano, nem mesmo ela se caracteriza como uma essência, mas ao contrário, a liberdade que faz com que a essência apareça. Nas palavras de Sartre a liberdade se consolida como o próprio ser homem: "A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos de liberdade não pode diferençar do ser da “realidade humana”. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre ser do homem e seu “ser livre”. (SARTRE). A emergência da liberdade é proporcionada pela dupla nadificação do ser, ou seja, o ser humano não é o mundo – um Em-si – tal qual não encontra nele uma identidade, mas sim um não ser. Sartre destaca: "A liberdade por seu próprio surgimento, determina-se em um “fazer”. Assim, a liberdade é falta de ser em relação a um ser dado, e não surgimento de um ser pleno. (SARTRE). Assim, a liberdade, para Sartre, não é entendida como um simples poder indeterminado do Em-si (objeto) ou do Para-si (nada), mas é uma síntese entre ambas que pressupõe a escolha. Neste caso, a liberdade é autonomia de escolha. Segundo Sartre, a liberdade é radical, pois o fato de não escolher, destaca o autor, já trata-se de uma escolha: a de não escolher. Nota-se que, as escolhas providas da liberdade não são deliberadas, mas conscientes, ou seja, a consciência se identifica com a escolha que faz, o que torna o ser humano totalmente responsável por elas.
Referências Biliográficas:
BORNHEIM, Gérard. Sartre: Metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva. 1971
MOUTINHO, L. D. Sartre: existência e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995.
PENHA, João. O que é existencialismo. Editora Brasiliense, 2001 (Coleção Primeiros Passos 61).
SARTRE, J. P. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica, trad. Paulo Perdigão Petrópolis: Vozes, 2002
Site de referência:
http://www.urutagua.uem.br
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