Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade:
"A influência filosófica de Nietzsche em Sartre não é identificada por conceitos ou recuperação de temas tratados, mas sim por um agir, por uma maneira de se portar no mundo, atitude que acaba por condicionar todo um pensamento filosófico."
"David Strauss: sectário e escritor"(Nietzsche)
"Num momento de euforia germânica, surge um jovem professor de filologia irritado com a pequenez de uma Alemanha que se contenta em ser grande. Para ele, vitórias militares, imposições territoriais ou mera diversidade cultural não constituem uma civilização invejável. É preciso uma cultura autêntica que dê unidade à multiplicidade da vida para que um povo se torne digno de júbilo e de triunfo."
É a partir desta análise que Nietzsche resolve escrever ensaios de intervenção, as "Considerações Intempestivas". Do projeto inicial, foram realizadas somente quatro "Considerações", das quais "David Strauss: sectário e escritor" é a que inicia. Nesta primeira intervenção, Nietzsche se propõe a analisar o escritor David Strauss e sua obra "A antiga e a nova fé". Porém, por meio desta proposta inicial, Nietzsche realiza uma dura crítica à cultura alemã contemporânea, especialmente ao erudito desta pseudo-civilização, chamado no texto pela alcunha de filisteu culto. Ao contrário do que a imprensa e os ilustrados da época pregavam, Nietzsche identifica na Alemanha um enfraquecimento do pensamento, um esvaziamento da vitalidade cultural de seu país. A confusão feita entre uma vitória militar e uma superioridade artística já diz muito sobre a má-compreensão do que seja uma cultura admirável e altiva. Torna-se urgente, para Nietzsche, destruir a discutível sensação de plenitude que os alemães passaram a ter, a fim de salvar a sociedade germânica do empobrecimento completo. Ao se recusar a compartilhar desta excitação desmedida e injustificável, o filósofo alemão se coloca em uma posição privilegiada para repensar seu tempo e descortinar o véu que cegava seu povo.
"O que é literatura?"(Sartre)
Em 1947, um outro pensador se depara com um cenário inquietante. Dois anos depois de criar a revista cujo o título já demostrava o seu comprometimento com uma nova era, Sartre se sente impelido a se colocar à contracorrente, a ser aquele que polemiza com o status quo francês. O bem em perigo é a literatura e os "visigodos" em questão são os distintos escritores franceses. O anseio pela pureza na arte da escrita, homens desejosos de serem clérigos, confusão entre poesia e prosa e a recusa de comprometimento no escrever são alguns dos equívocos que introduziram uma debilidade na força vital da linguagem. Em nome de valores eternos, de signos abstratos como a liberdade, justiça e razão, os eruditos renegam a vida, a sua época e produzem assim uma concepção desencarnada de literatura. Esta desordem passa a ser introjetada pelo escritor ilustrado, que não sabe mais qual é o seu lugar no mundo: "o homem de letras escreve enquanto se batem; um dia, tem orgulho nisso, sente-se depositário e guarda dos valores ideais; no dia seguinte, sente vergonha disso, pensa que a literatura se assemelha muito a um modo de afetação especial". Esta desorientação é um terrível risco para a literatura do século XX. O suposto erudito, crítico por profissão e por desespero, contribui para que "se leia mal, afoitamente, e se julgue antes de se compreender", levando a um dilaceramento do nobre tecido que aproxima os homens no espetáculo literário. Em termos sartrianos, esta prática introduz uma opacidade no seio da arte literária, contaminando as palavras e adoecendo a linguagem. Era preciso reagir! Os dois autores possuem oponentes definidos: o filisteu culto e o crítico literário. O filisteu culto não se trata de uma mera variação do filisteu historicamente entendido: não é o burguês ignorante, incapaz de reconhecer a sutileza da arte, mas, ao contrário, aquele tido como filho da cultura, intelectuais e artistas que se julgam superiores, porém incapazes de atribuir unidade de estilo ao seu fazer cultural. Da mesma forma, o crítico de Sartre não é simplesmente o representante da crítica literária, função esta exercida pelo próprio Sartre em diversos ensaios. É o homem erudito que renega a vida e se esconde atrás de um papel social respeitável para matar um pensamento potente. Em ambos os casos, do filisteu culto ao crítico literário, a cultura está entregue ao seu maior inimigo. Enquanto a cultura em geral, ou a literatura, deveria ser um espaço propício para que o novo surgisse, para que a vida adquirisse uma dimensão mais essencial, humana, seus detratores dissimulados acabam por silenciá-la e podá-la de qualquer fagulha de vitalidade. Para Nietzsche, aquilo que é produzido e fomentado pelo filisteu culto não se assemelha, nem vagamente, a uma cultura dita vigorosa, a não ser no vigor com que estes bárbaros "rejeitam todo estilo cultural e artístico rigoroso". Um cenário cultural digno de orgulho não se caracteriza pelo acúmulo de informações nem pela variedade de técnicas artísticas. É fundamental haver aquilo que o filósofo alemão denomina de unidade de estilo. Esta exigência máxima e necessária é um querer que dá forma às diferenças e imprime uma expressão à cultura. Este é o caráter plástico exigido por Nietzsche. A força plástica não se reduz a uma forma estética, mas abarca toda uma vontade que possua um enfoque criador, permitindo o surgimento de uma outra natureza para o homem: a cultura. Fora deste panorama, o que há é uma perda das distinções em favor de uma multiplicidade desconexa, de meros dados dissonantes que resultam numa barbárie, em um caos de signos e gestos, sobre os quais o filisteu culto aproveita para gerar artificialmente uma marca de sofisticação e de modernidade. No caso de Sartre, a questão incontornável é o engajamento próprio da linguagem. Ao recorrer à linguagem, o escritor faz com que as palavras sejam engendradas de sentido no exato momento da nomeação, gerando um comprometimento inerente e imediato com o dizer. "Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe"(Sartre). A noção de engajamento tratada em "O que é literatura?" extrapola uma simples exigência política, adquirindo uma natureza metafísica. O pensador francês se refere a um caráter próprio da linguagem, uma habilidade singular da escrita que, ao se iniciar, produz "uma transmutação contínua do real em irreal e do irreal em real", atribuindo ao escritor um engajamento que se desprende até mesmo de suas intenções iniciais. Ao transformar as figuras do mundo, o autor está "metido no caso, faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento". Assim, negar o engajamento é negar a própria linguagem. Tentar escrever fora deste registro é agir como "uma criança, ao acaso, fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir tiros"(Sartre). "Mas este não é o único intento do crítico literário. Ele deseja mais: quer não só esvaziar a escrita como também lavá-la até não sobrar um só grão de vida em sua prosa. Estes moradores de cemitérios buscam petrificar o pensamento dos autores mortos, lançando mão de classificações abstratas (pessimistas, idealistas, moralistas, etc.), quando não recorrem à empobrecedora análise estrita da dimensão histórica, amortecendo o impacto dos pecados do viver. É deste modo que os críticos constituem um novo "mundo desencarnado que o rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem mais, passaram à categoria de afeições exemplares, em suma, de valores". Tendo esmaecido a força dos verdadeiros textos clássicos, os críticos passam a atacar os ainda vivos, pedindo para que eles "não se agitem demasiadamente, e que se empenhem desde já em se parecer com os mortos que futuramente serão"(Sartre). Esta ligação estreita com a morbidez, este fascínio pela necrofilia, é um traço marcante também nos filisteus cultos. Nada mais nutritivo para um filisteu da cultura do que digerir pensadores vigorosos. Sua alegria é evidente e seu prazer indisfarçável. Até aqueles autores aparentemente eleitos por esta cultura bárbara como dignos de respeito sofrem rasgos e fissuras na vitalidade de suas obras quando tomados por clássicos ou merecedores de homenagem, pois "tudo isso não passa de pagamento em moeda corrente, ao que consente o filisteu instruído, a fim de poder ignorá-los no restante e acima de tudo, a fim de não ser forçado a seguir suas pegadas e a prosseguir suas pesquisas". Este gosto pelo estável e seu prezar pela quietude evidenciam o incômodo do filisteu culto com as vicissitudes da vida, contra sua natureza contingente e seu caráter mutante. Nada mais marginal a uma cultura bárbara do que a desmedida. É preciso o decoro e a postura típica das belas almas. Por isso, "rejeitam (...) essa confusão de filósofos delirantes e incongruentes, com suas teorias históricas extravagantes e tendenciosas, (...) essas aberrações poéticas engendradas na embriaguez, pois o filisteu não pode realmente permitir-se um excesso". Portanto, estes bárbaros, no comando da cultura, atuam incessantemente na busca de aplacar qualquer tipo de abuso. Dentro dos seus escritórios de estudo, constroem novas interpretações a fim de suavizar formas do pensar que ainda insistam em romper com a harmonia da doçura do viver. A tranquilidade é o ar que respira o crítico literário. Para Sartre, este andar compassado, esta prudência cultivada são frutos de um descaso proposital com o tempo presente. O erudito queria ser um homem do futuro e assim se ver livre de todas as exigências de sua época. Ele quer manter suas luvas limpas, tão puras quanto a arte a que ele se dedica. Deste jeito, acabam por transformar suas bibliotecas em locais assépticos, protegidos da vida tanto quanto os cemitérios são avessos aos vivos "Deus sabe o quanto os cemitérios são tranqüilos: os mortos estão lá!"(Sartre). Só por leviandade é possível afirmar haver uma comunhão teórica entre as figuras do filisteu culto e o crítico literário. O primeiro personagem se refere a um tipo que se julga ser predileto das musas, um intelectual artista, produtor de variedades, miscelânea esta tomada irresponsavelmente por cultura. Já o crítico literário é um comentarista, um resenhista de obra alheia, atribuidor de valor do trabalho de outrem. É aquele que analisa e qualifica a produção artística em nome de valores desencarnados. Não se pode negar a percepção de uma afinidade nos textos de Nietzsche e Sartre. A utilização de outros escritos como "O ser e o nada" e "Genealogia da Moral" ou ainda "Carnets de la drôle de guerre" e "Ecce homo", por exemplo, em nada comprometeria esta sensação de simpatia intelectual entre ambos, o que sugere, quanto a origem deste parentesco bastardo, a tarefa que cada um destes filósofos se impôs de pensar o seu tempo. Para Sartre, pensar é se lançar no mundo, na vida. Como não há meios de fugir do presente, o homem deve abraçar sua época. É desta forma que ele crê ser capaz de intervir em seu tempo: pensar o presente em nome de um porvir, entretanto, não um porvir em fuga, mas na afirmação de um agora. Nietzsche se faz inatual para ser um melhor crítico do seu tempo. O presente só floresce para a filosofia quando o pensador rompe a relação imediata e natural com o tempo. Do contrário, o homem descobre-se à imagem e semelhança de um fantoche guiado pelo destino. É através de uma atitude intempestiva, de um distanciamento interessado, que é possível vislumbrar um futuro capaz de fornecer instrumentos para atacar os equívocos do presente. A influência filosófica de Nietzsche em Sartre não é identificada por conceitos ou recuperação de temas tratados, mas sim por um agir, por uma maneira de se portar no mundo, atitude que acaba por condicionar todo um pensamento filosófico. Contudo, houve uma mudança. A multiplicidade se desgarrou da vida e se tornou um mérito em si mesma e uma nova ordem foi estabelecida. A prática de um jeito, de um fazer filosófico, criticado por Nietzsche e Sartre, antes taxada de barbárie, criou raízes e tornou-se expressão dominante. Longe desta tragédia pôr fim às batalhas. Apenas os nossos autores foram obrigados a trocarem de trincheiras. Aquele agir não era mais cultuado, mas tido como marginal ao processo vigente. Aquilo que era degenerado assumiu a face do instituído e respeitado, e aqueles que desafiavam o seu poder, tornaram-se bárbaros. Perante sua contemporaneidade, tanto Nietzsche quanto Sartre incorporaram os valores bastardos com o intuito de confrontar seus iguais e de transformar suas épocas, civilizações empobrecidas pelo aviltamento da própria noção de homem e de cultura. Nada poderia ser mais concreto do que esta influência existencial, esta aproximação quase que corpórea entre Nietzsche e Sartre. Afinal, a única herança possível que um andarilho pode deixar a outro é o movimento do próprio corpo, sua inquietude frente à mesmice. O único espólio a ser reclamado por um bárbaro é o seu desejo por dilacerar o estabelecido sob bases ilusórias; é o martelo rumo àquilo cristalizado pela inércia. Entender o parentesco de Sartre com Nietzsche ganha relevo a partir deste cenário contemporâneo. O segredo do agir sartriano, o seu encanto é esta inspiração pouco consciente de Nietzsche, este ímpeto perante a vida deixado pelo filósofo alemão. De certa forma, Sartre é um nietzschiano pelo avesso, solto das amarras conceituais de sua inspiração, livre então para refletir, à sua maneira, o seu próprio tempo. Neste sentido, tentar encontrar rastros na obra sartriana de um Nietzsche mais conceitual ou, em outras palavras, tentar ver Sartre como um intérprete tradicional de Nietzsche é afastar de vez qualquer possibilidade de vislumbrar a espetacular e decisiva contribuição nietzschiana no modo de se portar sartriano. Esta semelhança sem igualdade é fruto de um espelho existencial. Sartre, ao criticar e menosprezar Nietzsche, acaba por evidenciar a si próprio. O pensador alemão traz à tona aquilo que o filósofo francês nunca soube aceitar pacificamente em sua história: sua obsessão pela palavra, seu desejo de se tornar um escritor, seu gosto pelo estilo, enfim, sua autointitulada “neurose burguesa”. Nietzsche surge como imagem refletida daquilo que Sartre sempre tentou transformar ou superar, mas jamais conseguiu se desvencilhar: a ele próprio.
Referências bibliográficas:
LÉVY, B-H. O século de Sartre - inquérito filosófico. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 2001.
MARTON, S. Voltas e reviravoltas - acerca da recepção de Nietzsche na França. In: Nietzsche, um "francês" entre os franceses. São Paulo: Editora Barcarolla; Discurso Editorial. 2009.
MURICY, K. Benjamin e Nietzsche: considerações sobre o conceito de história e a crítica da cultura. In: Revista Síntese Nova Fase, v.20, n.63. Belo Horizonte. 1993.
Site de referência:
http://www.cadernosnietzsche.unifesp.br