domingo, 26 de fevereiro de 2012

Mesmo que o mundo seja um lugar incompreensível, a natureza, o sol e o mar valem o esforço de não desistir da vida.


O Sol:


"Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: dá-me orgulho de minha condição de homem. No entanto, já me foi dito várias vezes: não há nenhum motivo para ser orgulhoso. Mas creio que há muitos: o sol, o mar, meu coração saltando da juventude, meu corpo com sabor de sal e o imenso cenário onde a ternura e a glória se reencontram no amarelo e azul" 
CAMUS.

 Literatura, filosofia e política são partes indissociáveis das obras de Albert Camus, que denunciava o absurdo de sua era, as guerras e desordens que assolaram o tempo em que ele viveu. Camus viveu uma infância extremamente pobre. Sua mãe, uma faxineira e seu pai, um soldado morto em 1914 durante a Primeira Guerra Mundial. A miséria não trouxe para o escritor traços de amargura ou tristeza. Ao contrário, deu a Camus uma percepção de que se deve ser lúcido e amar a vida apesar das imperfeições do mundo: “[...] Esta família, que não sabia nem mesmo ler, deu-me, então, minhas mais elevadas lições, que perduram até hoje. A pobreza, tal como a vivi, não me ensinou, portanto, o ressentimento, mas, ao contrário, uma certa fidelidade, e a tenacidade muda”. Camus nos deixou obras nas quais vida e ficção estão misturadas, porém, longe de ter como objetivo primeiro a relação entre alguns dos seus personagens e seus familiares ou com ele mesmo, o autor se utilizou dessas semelhanças para analisar e escrever sobre a estranheza do homem frente a um mundo incompreensível, mas que ao mesmo tempo é fraternal e cheio de sol. Camus amava a vida e amava o sol da Argélia,  país onde nasceu. Disse no ensaio "L´été à Alger": “O que se pode amar na Argélia é aquilo de que todos vivem: o mar, visto em cada esquina de rua, um certo peso de sol, a beleza da raça, diante do mar afogado, eu caminhava e esperava nessa Argélia que continuava sendo para mim a cidade dos verões”. Camus transferiu para as páginas de suas obras toda a energia vibrante desse sol para ser admirado por seus personagens e leitores. Em "L´étranger" (O estrangeiro), por exemplo, Meursault é rodeado pelo sol que aquece seus passos por toda a narrativa, e é no prefácio de "L´envers et l´endroit" que Camus explica que sua admiração pelo sol começou ainda em sua infância: “[...] fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol, a miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo[...] na África, o sol e o mar nada custam”. De obra em obra, o escritor deu ao sol um lugar de destaque que influencia seus personagens, da mesma forma que ele próprio fora influenciado pelo seu brilho na infância simples que teve. Camus deixa claro no ensaio "L´ironie em L´envers et l´endroit" que a natureza, acima de tudo, o bastava: “O sol nos aquece os ossos, apesar de tudo”. O sol que está presente em "L´étranger" é o mesmo que fez parte da infância pobre de Camus, iluminando-a, ele justifica no prefácio de "L´envers et l´endroit" que qualquer ressentimento de sua época de criança pobre fora apagado pelo belo calor que reinou sobre sua infância, e resume sua ligação com o sol : “Assim como levei muito tempo para compreender minha ligação e meu amor pelo mundo da pobreza em que minha infância se passou, somente agora percebo a lição do sol e dos lugares que me viram nascer”. Nas obras de Camus, o homem pertence à mesma ordem que a natureza, é parte integrante dela, contemplando-a e unindo-se a ela. Meursault, em "L´étranger", movimenta-se na natureza que o cerca e identifica-se com ela. Essa identificação corporal com a natureza é o bastante par a que ele seja feliz: “O sol, como o mar, significa a vida – porém uma vida lúcida”. Eis o objetivo do homem absurdo: ser lúcido até o fim juntamente com a natureza. O absurdo da vida de Meursault vem sempre acompanhado com o prazer que o sol oferece. O sol, o mar, e o verde são motivos de felicidade para o homem absurdo que precisa viver o presente sem se refugiar na esperança ou no divino. Para ele, não há salvação. Sua felicidade está em seu presente. Fazer parte da natureza e viver como se o homem fosse uma extensão dela é uma forma de felicidade neste mundo. Nas obras de Camus o mundo tem como alma a natureza. Convém que ela seja compartilhada com o homem absurdo como fonte de felicidade. As limitações da vida humana são tão reais quanto a presença do sol queimando a pele. No livro "O estrangeiro", o sol está sempre presente como única testemunha e ao mesmo tempo motivo do assassinato de um árabe. A natureza é, para Meursault, uma parte integrante da intensidade de suas percepções sensoriais. O personagem se entrega ao sol e ao mar e sua vida caracterizada como absurda é sempre acompanhada por sensações da natureza que podem lhe dar prazer, como o morno sol no rosto e a areia quente. É nesse universo de natureza que Meursault encontra as mais fortes alegrias: “O tempo estava bom e, de brincadeira, deixei cair a cabeça para trás e encostei-a na sua barriga. Não reclamou e eu fiquei assim. Tinha o céu inteiro nos olhos e ele estava azul e dourado". A união da vida absurda de Meursault com a natureza e principalmente com o sol e o mar durante a narrativa de "L´étranger" acontece ora com momentos fraternais e ora como agravante dos acontecimentos. É diante desse sol, e também pressionado por ele, que Meursault comete um crime: mata um árabe. O primeiro movimento (inconsequente) que Meursault fez diante da situação tensa em que se encontrava com o árabe foi justamente para se livrar do sol que o incomodava. O passo dado à frente desencadeou a reação do outro homem, que, como defesa, exibiu sua faca ao sol e foi morto com cinco tiros instantes depois. Em seu julgamento, Meursault é questionado por que havia atirado naquele homem: “Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do meu ridículo, que fora por causa do sol”. A presença do sol nas obras de Camus coloca os personagens, como o caso de Meursault, vivendo a regularidade e o morno tédio da vida nos lugares ensolarados. Vemos o escorregar contínuo do tempo, dos dias lindos e da beleza que chega a inibir o homem. É em seu ensaio literário "La mort dans l'âme em L´envers et l´endroit" que Camus mais uma vez aponta a importância do sol em sua vida e sua obra: “Depois do deslumbramento das horas cheias de sol, vem o deslumbramento do entardecer, no cenário esplêndido que nele faz ouro do pôr-do-sol e negro dos ciprestes”. Cada detalhe da natureza descrita por Camus em suas obras é o suficiente para encher os personagens de amor pela vida e fazer transbordar seus corações, O ideal para Camus é estar sempre aberto e unido à natureza que rodeia o homem, e através desta união, tentar reduzir a distância que existe entre o ser humano e o mundo: “Em pleno inverno, aprendia por fim que existia em meu ser um verão invencível”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARRETO, Vicente. Camus: Vida e Obra. 2. ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1997

LEITE, Roberto de Paula. Abert Camus: Notas e estudo crítico. São Paulo: Ed.
Edaglit, 1963

PINTO, Manuel da Costa. Albert Camus: um elogio do ensaio. São Paulo: Ed. Ateliê
Editorial, 1998.

RIBEIRO, Hél der. Do absurdo à solidariedade: a visão do mundo de Al bert Camus.
Lisboa: Ed. Esta mpa, 1996.


sábado, 18 de fevereiro de 2012

"Antes, a questão era descobrir se a vida precisava de ter algum significado para ser vivida. Agora, ao contrário, ficou evidente que ela será vivida melhor se não tiver significado." Camus.




"Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança."
Albert Camus, O Mito de Sísifo.




Albert Camus nasceu a 7 de Novembro de 1913, em Dréan, na Argélia, filho de  pai francês, Lucien, e  mãe descendente espanhola, Catherine Hélène. Camus não conheceu o seu pai pois este morreu em 1914 em uma batalha durante a Primeira Guerra Mundial. Após a morte de seu pai, sua mãe levou consigo os seus dois filhos para casa da avó materna que ficava no bairro operário de Belcourt, na capital, Argel.  Além de Camus, de sua mãe e sua avó materna, na casa moravam também seu irmão mais velho e um tio, tanoeiro de profissão (fabricava barris, pipas e tonéis para o transporte e conserva do vinho). Camus deveria ter seguido a profissão de seu tio, mas a sua professora primária, M. Germain, viu nele um futuro promissor e contra a vontade da família, conseguiu que ele continuasse os estudos no liceu. O próprio Camus gostava do ambiente onde  seu tio trabalhava e tinha sobre si o peso e a consciência de que sua família precisava da sua ajuda. Durante o secundário Camus quase desistiu dos estudos quando, mais uma vez, um professor seu, Jean Grenier, o encorajou para que continuasse e se graduasse em Filosofia. Em sua obra “O Homem Revoltado” há uma  dedicatória a seu professor.Quando completou o doutoramento e estava, finalmente, apto a lecionar, sofreu uma forte crise em consequência de tuberculose, deixando-o perto da morte.  Camus adorava jogar futebol, era goleiro, mas com a evolução da tuberculose, que contraiu em 1930, foi obrigado a abandonar o futebol. No entanto, nunca deixou de ser um grande admirador desse esporte e uma das primeiras coisas que pediu quando veio ao Brasil foi assistir a uma partida de futebol. Em 1934, casou-se com Simone Hie, porém, cedo o casamento terminou devido às infidelidades de ambas as partes e ao vício em morfina de que Simone sofria. Uns anos mais tarde, casou-se com Francine Faure, pianista e matemática, e com ela teve gêmeos, Catherine e Jean. Mesmo assim, continuou a ser infiel e a sua amante oficial era Maria Casares, uma reconhecida atriz francesa. Em 1939, mudou-se para França, nessa época a França foi  ocupada pelos alemães, por isso Camus foi proibido de sair do país e sua mulher e filhos não puderam acompanhá-lo, permanecendo na Argélia. Esta mudança foi forçada pelas autoridades francesas depois de Camus ter publicado uma série de ensaios onde contava que os franceses proibiam o atendimento médico aos árabes e deixavam-nos mesmo morrer de fome, incluindo as crianças, pois estes não eram considerados cidadãos franceses e eram subjugados a um governo no qual não podiam votar. Camus ficou em Paris onde trabalhava para um jornal, mas depois, devido à censura e vigilância constante por parte dos nazistas, mudou-se para Bordeaux, no sudoeste de França, onde começou a participar no Núcleo de Resistência, tornando-se um dos editores do jornal clandestino Combat e passou a ser conhecido por “Beauchard”, o seu nome de guerra. As obras “O Avesso e o Direito” e “Bodas em Tipasa” foram publicadas quando ainda residia na Argélia e em Bordeaux, para além da sua ocupação em alguns jornais, dedicou-se a outra sua paixão, o Teatro. Em 1942, apresentou-se a Sartre devido à sua obra “O Estrangeiro” sobre a qual Sartre elogiou e disse que gostaria de conhecer o autor, tornaram-se bons amigos até 1952, data em que foi publicada a obra “O Homem Revoltado”, uma análise filosófica sobre a rebeldia e revolução, onde Camus revelou a sua rejeição ao comunismo, do qual fez parte na Algéria e do qual foi expulso por se acreditar, erradamente, que era um seguidor de Leon Trotsky. A obra “O Homem Revoltado” aborreceu muitos dos seus colegas e provocou um desentendimento público e o fim da amizade entre Camus e Satre. Em 1957  recebeu o prêmio Nobel de Literatura, não pelo seu romance publicado no ano anterior “A Queda” mas sim pelos seus escritos publicados contra a pena de morte. Numa palestra que deu na Universidade de Estocolmo revelou que apenas tinha se mantido à parte, na questão da pena de morte na Algéria, com medo do que pudessem fazer à sua mãe, que vivia nesse país. Albert Camus morreu em 4 de Janeiro de 1960, em Villeblevin, vítima de um acidente de automóvel. Consigo estava o manuscrito de “O Primeiro Homem”, um romance autobiográfico e, ironicamente, numa das suas notas, uma informação de que o romance deveria terminar inacabado. Por coincidência, a sua mãe faleceu no mesmo ano. Camus não era para ter feito a viagem de carro para Paris, mas sim de trem, e tinha até já comprado a passagem com seu amigo poeta, René Char, mas por insistência de uma família amiga sua, que ira também para Paris no mesmo dia, acabou por ir de carro com eles. O condutor, Michel Galliardi, seu amigo e editor das suas obras também morreu nesse acidente. René Char que foi também convidado, recusou para não lotar o automóvel. O relógio do painel do carro, que foi de encontro a uma árvore, parou no instante do acidente, indicando assim a hora da morte de Albert Camus: 13h55. Albert Camus encontra-se enterrado no Cemitério Lourmarin em Vaucluse, na França.

Site de referência:

http://filosofocamus.sites.uol.com.br


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Tornar-se um gênero é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma realidade de plenas sanções, tabus e prescrições".



"Não é possível assumir um gênero de um momento para o outro. Trata-se de um  projeto laborioso, sutil e estratégico, e quase sempre velado. Tornar-se um gênero é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma realidade de plenas sanções, tabus e prescrições. A escolha de assumir certo tipo de corpo, viver ou usar o corpo de certo modo que as reproduzam e organizem de novo. Menos um ato radical de criação, o gênero é interpretar normas de gênero recebidas de um modo que as reproduzam e organizem de novo. Menos um ato radical de criação, o gênero é um projeto tácito para renovar a história cultural nas nossas próprias condições corpóreas. Não é uma tarefa prescritiva de que devamos nos esforçar para fazer, mas aquela em que estamos nos esforçando sempre, desde o começo".
Judith Butler


Simone de Beauvoir e a condição feminina:


Escritora, filósofa, mulher na vanguarda de muitas idéias e de várias atitudes: é realmente difícil definir ou delimitar a importância de Simone de Beauvoir para nós, mulheres e homens. Simone parece ter conseguido construir seu “projeto” de vida de forma profundamente (e para muitos da época, irritantemente) independente. Escreveu O Segundo Sexo, livro memorável, remarcável, para várias gerações de mulheres. Escrito numa época de dolorosa transição e reconstrução, no pós-guerra da Europa, o livro é um grito de libertação para todas as mulheres e também para a própria Simone. Através dele é que Beauvoir vai se afirmar, de modo definitivo, como pensadora original e testemunha crítica de sua própria época; ela desafia preconceitos e trata de forma aberta e simples temáticas tabu tais como: a sexualidade na infância, a menstruação, o erotismo, o desejo e a iniciação sexual, a religiosidade repressora, a cultura de dominância masculina e machista e a desqualificação cultural da feminilidade, o sexismo na literatura, o defloramento e a brutalidade masculina na relação sexual, a virgindade, o orgasmo, o lesbianismo, a dominação masculina no casamento tradicional, a prostituição, a velhice, o suicídio, entre muitos outros. Muitos fatores e elementos convergiram para a publicação desta obra, neste período. Ter se enamorado e convivido com Jean Paul Sartre  por mais de cinqüenta anos foi uma experiência que, retrospectivamente, podemos considerar como altamente “ambígua”. Se por um lado a convivência foi crucial nos destinos da existência e também nas formas do pensar filosófico para Simone, levando-a a caminhos literários e teóricos que culminaram na criação conjunta da corrente do existencialismo (e a própria autora gostava de definir o “existencialismo” como a filosofia da ambigüidade); por outro, a parceria lhe rendeu dificuldades no reconhecimento público de um pensamento forte, próprio e independente. Apenas recentemente começou-se a tentar identificar a real originalidade da contribuição de Simone de Beauvoir para a filosofia moderna e também para o feminismo. Um dos muitos méritos de Simone de Beauvoir com O Segundo Sexo  foi traduzir para uma linguagem comum, plenamente acessível, simples e com exemplos abundantes, os avanços  da literatura, da psicologia e sobretudo da psicanálise sobre a condição feminina. A autora reescreve assim os próprios limites da teoria social e filosófica, quase que obrigando a estes campos ao frutífero debate com outras áreas, onde o conhecimento caminhava mais rapidamente no sentido da emancipação para a condição feminina. Alguns críticos tendem a analisar que a sua escolha por uma carreira acadêmica – como professora e escritora – deveu-se às muitas dificuldades que assistiu sua família (em especial a sua mãe) passar durante a Primeira Guerra Mundial. Se as vicissitudes das tarefas domésticas desempenhadas pela figura materna num período sombrio financeiramente desempenharam papel na “escolha” de Beauvoir em não se tornar a “dona de casa” tradicional e a “mãe devotada”, este não foi o único vetor determinante de suas decisões polêmicas para aquela época (sobretudo não se casar formalmente e também decidir optar pela não maternidade). O pensamento vigoroso e inquieto, a não acomodação, a insatisfação, a capacidade de recusa e a coragem certamente são ingredientes igualmente fundamentais para entendermos a mulher que Beauvoir veio a “tornar-se”: "Primeiramente, haverá sempre certas diferenças entre homem e mulher; tendo seu erotismo, logo seu mundo sexual, uma figura singular, nada poderá deixar de engendrar nela uma sensualidade, uma sensibilidade singular: suas relações com seu corpo, o corpo do homem, o filho, nunca serão idênticas às que o homem mantém como o seu corpo, o corpo feminino, o filho;  os que tanto falam de “igualdade na diferença” mostrar-se-iam de má-fé em não admitir que possam existir diferenças na igualdade. (...) Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para ele: reconhecendo-se mutuamente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro; a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engendra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: dar, conquistar, unir-se conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a “seção” da humanidade revelará sua significação autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira". Simone de Beauvoir.

Referências Bibliográficas:

BUTLER, Judith. Variações sobre Sexo e Gênero

BEAUVOIR, Simone de.  O Segundo Sexo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo, Ed. Cortez

Site de referência:

http://www.pagu.unicamp.br

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

"Não se nasce mulher: torna-se". Simone de Beauvoir


"É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta." Beauvoir.





Simone-Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir nasceu em Paris em 9 de janeiro de 1908, no boulevard du Montparnasse 103. Seu pai, Georges Bertrand de Beauvoir, acreditava ainda pertencer à aristocracia francesa, mas, nesta época, a decadência já se fazia sentir. Sua mãe, Françoise Brasseur, provinha de uma família da alta burguesia, porém à beira da ruína. Em virtude de um abastado passado comum, os pais de Simone a educaram com a firme idéia de que ela fazia parte de uma certa elite. Sua única irmã, Hélène (apelidada de Poupette), nasceu dois anos mais tarde que Simone. Em 1913 Beauvoir inicia seus estudos no Cours Désir, uma instituição católica particular, na qual estudará dos 5 aos 17 anos. Em agosto de 1914 os alemães declaram guerra. O pai de Simone parte para o front em outubro, mas um ataque cardíaco o traz de volta três meses depois. A guerra concede a Simone um pai mais atencioso: Georges de Beauvoir estimulava em sua filha o culto à literatura, incutindo-lhe a idéia “de que não havia no mundo nada mais belo que ser escritor”. Françoise de Beauvoir partilha com o marido o amor aos livros e estimula Simone a escrever histórias. Aluna extremamente dedicada, tudo interessa e causa profunda admiração a Simone, que demonstra uma curiosidade ilimitada. Aos dez anos Simone conhece Zaza (Élizabeth Lacoin), que acabava de entrar para o Cours Désir. De cabelos curtos, com aspecto de rapaz, Zaza provoca em Simone uma admiração imediata por seu desembaraço e desenvoltura. De espírito cáustico, cínica, Zaza ridicularizava todo mundo com prazer, inclusive a si mesma. Desprezava a humanidade, que lhe parecia pouco apreciável e demonstrava desprezo ainda maior pelas pessoas que só respeitavam o dinheiro e as dignidades pessoais. Toda a hipocrisia a revoltava. Simone ouve sua nova amiga deslumbrada, pois Zaza se atrevia a dizer bem alto o que Beauvoir apenas pensava. Desenvolve um profundo sentimento de amizade por Zaza, amor-admiração que modifica fortemente sua visão de mundo, fazendo-a se tornar mais audaciosa, segura de si e insubordinada. Em 1919, em virtude de problemas financeiros, a Família de Simone precisa deixar o imóvel do boulevard du Montparnasse por outro bem mais modesto, na rue de Rennes. As relações entre Beauvoir e seu pai ficam tensas, o ambiente familiar pesado. Ela começa a perceber as contradições de Georges de Beauvoir, cada vez mais amargurado e arrogante, chegando a ser hostil com as filhas, sobretudo com Simone. Aos 15 anos — já não mais acreditando em Deus — ela tem plena consciência do que será quando crescer: "uma escritora", não hesita em afirmar quando indagada a respeito. Simone passa com a menção bien no bacharelado de Latim-Letras e com menção très bien no bacharelado de Matemática Elementar. Decide que será professora até se tornar escritora. O pai de Beauvoir não se opõe a suas modestas pretensões, já que o magistério representa segurança, entretanto, sente-se humilhado acreditando que a filha é a encarnação de seu próprio fracasso. Ele considera Simone pobre e feia demais para arranjar marido, e, na época, o casamento era algo fundamental na vida de uma mulher. Por causa das idéias do pai, Simone torna-se uma jovem oprimida por sua inteligência fora do comum. Georges de Beauvoir acaba pressionando a filha a obter não apenas 2 licenciaturas, mas 3: Letras, Matemática e Filosofia. Simone matricula-se no Institut Catholique para conseguir um diploma em Matemática, e no Institut Sainte-Marie de Neuilly para a licenciatura em Letras. Em 1926 entra para a Sorbonne e dedica-se com afinco ao estudo da Filosofia, que fortalece sua tendência em conhecer o mundo em sua totalidade. Obcecada pela finitude da vida, Simone tem apenas um lema: vencer depressa. Em 1928, concluída a licenciatura em Filosofia, Beauvoir decide preparar sua agrégation (admissão por concurso ao título de professora-titular de nível superior), verdadeiro desafio para uma aluna da Sorbonne. Jean-Paul Sartre, também aluno da Sorbonne, impressionado com a beleza, inteligência e a voz rouca de Simone, envia-lhe, por intermédio de René Maheu, uma caricatura de Leibniz feita durante uma palestra, como forma de aproximação. Terminadas as provas escritas para a agrégation, Sartre, novamente usando Maheu como intermediário, convida Beauvoir a estudar em grupo para os exames orais. Ela aceita, e durante os 15 dias anteriores  aos exames, separam-se apenas para dormir. Sartre é aprovado em 1º lugar na agrégation, Simone, com uma diferença de apenas 2 pontos, é a 2ª colocada — tornando-se a mais jovem agrégée da França. Beauvoir deixa a casa dos pais em troca de um quarto alugado na casa da avó materna. Ensina Latim num emprego temporário no Lycée Victor-Duruy. Sartre e Simone estão apaixonados, entretanto, em vez de pedi-la em casamento, ele lhe propõe um pacto no qual monogamia e mentira não teriam lugar. Sartre acredita que antes de serem amantes, eles eram escritores, e como tal precisariam conhecer a fundo a alma humana, multiplicando suas experiências individuais e contando-as, um ao outro, nos mínimos detalhes. Entre Simone e Sartre o amor seria necessário, com as demais pessoas, seria contingente. Beauvoir aceita o pacto, pois ele está de acordo com suas próprias convicções. Em 1931, Simone é nomeada professora em Marseille, e Sartre é nomeado para o Havre. Este afastamento provoca em Beauvoir tamanha contrariedade que Sartre lhe propõe casamento. Ela se recusa, pois não queria aderir aos moldes das obrigações familiares e sociais, nem alterar a originalidade inestimável de suas relações pessoais. Aos 23 anos, Beauvoir prefere Sartre em liberdade. Simone acaba percebendo entre suas alunas Olga Kosakiewicz, "a pequena russa", por quem rapidamente se afeiçoa, não demorando a ser correspondida. Com o retorno de Sartre à França, Beauvoir, ele e Olga iniciam uma espécie de triângulo amoroso, "O Trio". Jacques-Laurent Bost, ex-aluno de Sartre no Havre, acaba se juntando ao grupo de amigos de Simone e Sartre, "la petite famille", que fazem do Hôtel Le Petit Mouton seu quartel-general. Simone e Sartre "adotam" Olga, responsabilizando-se por seus estudos, que não tardam a fracassar. O relacionamento do Trio experimenta seu apogeu, e logo em seguida vem o declínio. Olga inicia um envolvimento com Bost. Em 1937, durante uma viagem pelos Alpes, Simone envolve-se também com Bost, que lhe fazia companhia — o que, de certo modo, acaba provocando a dissolução definitiva do Trio. No Lycée Molière, Simone inicia outra amizade com uma de suas alunas preferidas: Bianca Bienenfeld (Lamblin). Início de um novo trio: Beauvoir, Sartre e Bianca. Entretanto, em virtude da guerra, o relacionamento é bruscamente interrompido em 1939.  A experiência da guerra provoca em Beauvoir e Sartre o sentido de responsabilidade e solidariedade — as pedras fundamentais da moral existencialista. O filósofo Gabriel Marcel aplica o termo "Existencialismo" ao conjunto de idéias que a obra de Sartre e Beauvoir corporifica. O reitor da Sorbonne acha inadmissível manter Beauvoir no corpo docente. Ela não era casada e vivia há anos em concubinato com Sartre; não tinha domicílio fixo, residia em hotéis, corrigia os trabalhos das alunas em cafés e dava aulas sobre os escritores homossexuais Proust e Gide; além disso, Simone demonstrava profundo desprezo por toda a disciplina moral e familiar. Por fim ela própria decide não dedicar-se mais ao magistério. Em 1945, juntamente com Sartre, Simone torna-se uma das fundadoras da revista Les Temps Modernes, que permanecerá no centro da vida intelectual francesa pelos próximos 25 anos, tomando posições radicais e de esquerda nas frentes nacional e internacional. Em 1946, estimulada por Sartre, Simone começa a pensar em escrever sobre a condição feminina. Em maio de 1948, fragmentos de O Segundo Sexo começam a ser publicados na revista Les Temps Modernes. Simone prossegue escrevendo a continuação do ensaio, sendo lançado em dois volumes (o primeiro em junho, o outro em novembro), causando grande escândalo. Beauvoir é severamente atacada, mesmo por alguns amigos, como Albert Camus amigo comum dela e de Sartre. Ao falar sobre o corpo da mulher e a sexualidade feminina, Simone quebra importantes tabus. O Vaticano põe o livro no index. A despeito de tudo, o livro é um sucesso absoluto de vendas: vinte e dois mil exemplares do 1º volume se esgotam em uma semana. O 2º volume é vendido com maior facilidade ainda. Em 1951 Sartre rompe com Camus, e se aproxima dos comunistas. Beauvoir dá apoio a Sartre, e os dois nunca mais voltam a falar com Camus. No inverno de 1956, Beauvoir começa o projeto que havia tido há dez anos: escrever suas memórias de infância. Nesta época ela é a escritora mais famosa do mundo, e consegue ver sua vida como uma dramática história de sucesso. Em apenas oito meses ela escreve Memórias de uma Moça Bem-Comportada. A saúde de Sartre começa a deteriorar-se. Obstinado, ele trabalha excessivamente, sustentado por grande quantidade de remédios, a esse ritmo frenético soma-se o abuso do álcool. Preocupada, não suportando vê-lo destruir-se, Simone começa a assumir o papel de enfermeira e guardiã, esforçando-se para que ele limitasse o uso de intoxicantes, em vão. A morte de Camus, aos 46 anos, em janeiro de 1960, abala Simone, mesmo eles já não sendo amigos. Em agosto de 1960, Simone e Sartre visitam o Brasil, durante dois meses. O convite havia sido feito por Jorge Amado e alguns intelectuais brasileiros, interessados na revolução cubana e em mostrar ao casal o que era um país subdesenvolvido. Beauvoir e Sartre viajam pelo Brasil cobrindo doze mil quilômetros, tendo Jorge Amado como guia. No Rio de Janeiro, Simone faz uma conferência sobre a condição da mulher, enquanto Sartre fala sobre Cuba e a Argélia para salas repletas. Beauvoir e ele formam, aos olhos de todos, um bloco intelectual indivisível. Em Brasília, eles são recebidos pelo presidente Kubitschek. Em São Paulo fazem uma conferência para a imprensa e concedem uma entrevista para a TV. Nos anos 1970, Simone de Beauvoir publicou o quarto volume de suas memórias, Balanço Final (1972) e passou a apoiar oficialmente as ações do movimento feminista. Em 1974, criou a Ligue du Droit des Femmes. Ao final da década, Sartre estava seriamente debilitado, sua saúde frágil não permitiu que se recuperasse de uma pneumonia. Ele faleceu em 15 de abril de 1980.  Simone enfrentou as perdas com lucidez e refletiu sobre a morte em seus últimos escritos. A Cerimônia do Adeus (1981) foi o último livro publicado em vida pela escritora, filósofa e memorialista. Sua saúde começou, então, a se debilitar com o uso abusivo do álcool e das anfetaminas. Simone morreu em 14 de abril de 1986, vítima de pneumonia, um dia antes do aniversário da morte de Sartre, tendo realizado seus dois sonhos de infância: o de se tornar escritora e o de ser uma mulher independente. Mas também sem realizar um de seus maiores desejos desde que conheceu Sartre: o de que seu companheiro de toda a vida não morresse antes dela. Está sepultada no mesmo túmulo de Jean-Paul Sartre no Cemitério de Montparnasse em Paris.

Site de referência:

www.simonebeauvoir.kit.net/


domingo, 12 de fevereiro de 2012

A única herança possível que um andarilho pode deixar a outro é o movimento do próprio corpo, sua inquietude frente à mesmice!



Nietzsche e Sartre: bárbaros da modernidade:


"A influência filosófica de Nietzsche em Sartre não é identificada por conceitos ou recuperação de temas tratados, mas sim por um agir, por uma maneira de se portar no mundo, atitude que acaba por condicionar todo um pensamento filosófico."



"David Strauss: sectário e escritor"(Nietzsche)  

"Num momento de euforia germânica, surge um jovem professor de filologia irritado com a pequenez de uma Alemanha que se contenta em ser grande. Para ele, vitórias militares, imposições territoriais ou mera diversidade cultural não constituem uma civilização invejável. É preciso uma cultura autêntica que dê unidade à multiplicidade da vida para que um povo se torne digno de júbilo e de triunfo."

É a partir desta análise que Nietzsche resolve escrever ensaios de intervenção, as "Considerações Intempestivas". Do projeto inicial, foram realizadas somente quatro "Considerações", das quais "David Strauss: sectário e escritor" é a que inicia. Nesta primeira intervenção, Nietzsche se propõe a analisar o escritor David Strauss e sua obra "A antiga e a nova fé". Porém, por meio desta proposta inicial, Nietzsche realiza uma dura crítica à cultura alemã contemporânea, especialmente ao erudito desta pseudo-civilização, chamado no texto pela alcunha de filisteu culto. Ao contrário do que a imprensa e os ilustrados da época pregavam, Nietzsche identifica na Alemanha um enfraquecimento do pensamento, um esvaziamento da vitalidade cultural de seu país. A confusão feita entre uma vitória militar e uma superioridade artística já diz muito sobre a má-compreensão do que seja uma cultura admirável e altiva. Torna-se urgente, para Nietzsche, destruir a discutível sensação de plenitude que os alemães passaram a ter, a fim de salvar a sociedade germânica do empobrecimento completo. Ao se recusar a compartilhar desta excitação desmedida e injustificável, o filósofo alemão se coloca em uma posição privilegiada para repensar seu tempo e descortinar o véu que cegava seu povo.

 "O que é literatura?"(Sartre)

Em 1947, um outro pensador se depara com um cenário inquietante. Dois anos depois de criar a revista cujo o título já demostrava o seu comprometimento com uma nova era, Sartre se sente impelido a se colocar à contracorrente, a ser aquele que polemiza com o status quo francês. O bem em perigo é a literatura e os "visigodos" em questão são os distintos escritores franceses. O anseio pela pureza na arte da escrita, homens desejosos de serem clérigos, confusão entre poesia e prosa e a recusa de comprometimento no escrever são alguns dos equívocos que introduziram uma debilidade na força vital da linguagem. Em nome de valores eternos, de signos abstratos como a liberdade, justiça e  razão, os eruditos renegam a vida, a sua época e produzem assim uma concepção desencarnada de literatura. Esta desordem passa a ser introjetada pelo escritor ilustrado, que não sabe mais qual é o seu lugar no mundo: "o homem de letras escreve enquanto se batem; um dia, tem orgulho nisso, sente-se depositário e guarda dos valores ideais; no dia seguinte, sente vergonha disso, pensa que a literatura se assemelha muito a um modo de afetação especial". Esta desorientação é um terrível risco para a literatura do século XX. O suposto erudito, crítico por profissão e por desespero, contribui para que "se leia mal, afoitamente, e se julgue antes de se compreender", levando a um dilaceramento do nobre tecido que aproxima os homens no espetáculo literário. Em termos sartrianos, esta prática introduz uma opacidade no seio da arte literária, contaminando as palavras e adoecendo a linguagem. Era preciso reagir! Os dois autores possuem oponentes definidos: o filisteu culto e o crítico literário. O filisteu culto não se trata de uma mera variação do filisteu historicamente entendido: não é o burguês ignorante, incapaz de reconhecer a sutileza da arte, mas, ao contrário, aquele tido como filho da cultura, intelectuais e artistas que se julgam superiores, porém incapazes de atribuir unidade de estilo ao seu fazer cultural. Da mesma forma, o crítico de Sartre não é simplesmente o representante da crítica literária, função esta exercida pelo próprio Sartre em diversos ensaios. É o homem erudito que renega a vida e se esconde atrás de um papel social respeitável para matar um pensamento potente. Em ambos os casos, do filisteu culto ao crítico literário, a cultura está entregue ao seu maior inimigo. Enquanto a cultura em geral, ou a literatura, deveria ser um espaço propício para que o novo surgisse, para que a vida adquirisse uma dimensão mais essencial, humana, seus detratores dissimulados acabam por silenciá-la e podá-la de qualquer fagulha de vitalidade. Para Nietzsche, aquilo que é produzido e fomentado pelo filisteu culto não se assemelha, nem vagamente, a uma cultura dita vigorosa, a não ser no vigor com que estes bárbaros "rejeitam todo estilo cultural e artístico rigoroso". Um cenário cultural digno de orgulho não se caracteriza pelo acúmulo de informações nem pela variedade de técnicas artísticas. É fundamental haver aquilo que o filósofo alemão denomina de unidade de estilo. Esta exigência máxima e necessária é um querer que dá forma às diferenças e imprime uma expressão à cultura. Este é o caráter plástico exigido por Nietzsche. A força plástica não se reduz a uma forma estética, mas abarca toda uma vontade que possua um enfoque criador, permitindo o surgimento de uma outra natureza para o homem: a cultura. Fora deste panorama, o que há é uma perda das distinções em favor de uma multiplicidade desconexa, de meros dados dissonantes que resultam numa barbárie, em um caos de signos e gestos, sobre os quais o filisteu culto aproveita para gerar artificialmente uma marca de sofisticação e de modernidade. No caso de Sartre, a questão incontornável é o engajamento próprio da linguagem. Ao recorrer à linguagem, o escritor faz com que as palavras sejam engendradas de sentido no exato momento da nomeação, gerando um comprometimento inerente e imediato com o dizer. "Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe"(Sartre). A noção de engajamento tratada em "O que é literatura?" extrapola uma simples exigência política, adquirindo uma natureza metafísica. O pensador francês se refere a um caráter próprio da linguagem, uma habilidade singular da escrita que, ao se iniciar, produz "uma transmutação contínua do real em irreal e do irreal em real", atribuindo ao escritor um engajamento que se desprende até mesmo de suas intenções iniciais. Ao transformar as figuras do mundo, o autor está "metido no caso, faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento". Assim, negar o engajamento é negar a própria linguagem. Tentar escrever fora deste registro é agir como "uma criança, ao acaso, fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir tiros"(Sartre). "Mas este não é o único intento do crítico literário. Ele deseja mais: quer não só esvaziar a escrita como também lavá-la até não sobrar um só grão de vida em sua prosa. Estes moradores de cemitérios buscam petrificar o pensamento dos autores mortos, lançando mão de classificações abstratas (pessimistas, idealistas, moralistas, etc.), quando não recorrem à empobrecedora análise estrita da dimensão histórica, amortecendo o impacto dos pecados do viver. É deste modo que os críticos constituem um novo "mundo desencarnado que o rodeia, um mundo em que as afeições humanas, como não comovem mais, passaram à categoria de afeições exemplares, em suma, de valores". Tendo esmaecido a força dos verdadeiros textos clássicos, os críticos passam a atacar os ainda vivos, pedindo para que eles "não se agitem demasiadamente, e que se empenhem desde já em se parecer com os mortos que futuramente serão"(Sartre). Esta ligação estreita com a morbidez, este fascínio pela necrofilia, é um traço marcante também nos filisteus cultos. Nada mais nutritivo para um filisteu da cultura do que digerir pensadores vigorosos. Sua alegria é evidente e seu prazer indisfarçável. Até aqueles autores aparentemente eleitos por esta cultura bárbara como dignos de respeito sofrem rasgos e fissuras na vitalidade de suas obras quando tomados por clássicos ou merecedores de homenagem, pois "tudo isso não passa de pagamento em moeda corrente, ao que consente o filisteu instruído, a fim de poder ignorá-los no restante e acima de tudo, a fim de não ser forçado a seguir suas pegadas e a prosseguir suas pesquisas". Este gosto pelo estável e seu prezar pela quietude evidenciam o incômodo do filisteu culto com as vicissitudes da vida, contra sua natureza contingente e seu caráter mutante. Nada mais marginal a uma cultura bárbara do que a desmedida. É preciso o decoro e a postura típica das belas almas. Por isso, "rejeitam (...) essa confusão de filósofos delirantes e incongruentes, com suas teorias históricas extravagantes e tendenciosas, (...) essas aberrações poéticas engendradas na embriaguez, pois o filisteu não pode realmente permitir-se um excesso". Portanto, estes bárbaros, no comando da cultura, atuam incessantemente na busca de aplacar qualquer tipo de abuso. Dentro dos seus escritórios de estudo, constroem novas interpretações a fim de suavizar formas do pensar que ainda insistam em romper com a harmonia da doçura do viver. A tranquilidade é o ar que respira o crítico literário. Para Sartre, este andar compassado, esta prudência cultivada são frutos de um descaso proposital com o tempo presente. O erudito queria ser um homem do futuro e assim se ver livre de todas as exigências de sua época. Ele quer manter suas luvas limpas, tão puras quanto a arte a que ele se dedica. Deste jeito, acabam por transformar suas bibliotecas em locais assépticos, protegidos da vida tanto quanto os cemitérios são avessos aos vivos "Deus sabe o quanto os cemitérios são tranqüilos: os mortos estão lá!"(Sartre). Só por leviandade é possível afirmar haver uma comunhão teórica entre as figuras do filisteu culto e o crítico literário. O primeiro personagem se refere a um tipo que se julga ser predileto das musas, um intelectual artista, produtor de variedades, miscelânea esta tomada irresponsavelmente por cultura. Já o crítico literário é um comentarista, um resenhista de obra alheia, atribuidor de valor do trabalho de outrem. É aquele que analisa e qualifica a produção artística em nome de valores desencarnados. Não se pode  negar a percepção de uma afinidade nos textos de Nietzsche e Sartre. A utilização de outros escritos como "O ser e o nada" e "Genealogia da Moral" ou ainda "Carnets de la drôle de guerre" e "Ecce homo", por exemplo, em nada comprometeria esta sensação de simpatia intelectual entre ambos, o que sugere, quanto a origem deste parentesco bastardo, a tarefa que cada um destes filósofos se impôs de pensar o seu tempo. Para Sartre, pensar é se lançar no mundo, na vida. Como não há meios de fugir do presente, o homem deve abraçar sua época. É desta forma que ele crê ser capaz de intervir em seu tempo: pensar o presente em nome de um porvir, entretanto, não um porvir em fuga, mas na afirmação de um agora. Nietzsche se faz inatual para ser um melhor crítico do seu tempo. O presente só floresce para a filosofia quando o pensador rompe a relação imediata e natural com o tempo. Do contrário, o homem descobre-se à imagem e semelhança de um fantoche guiado pelo destino. É através de uma atitude intempestiva, de um distanciamento interessado, que é possível vislumbrar um futuro capaz de fornecer instrumentos para atacar os equívocos do presente. A influência filosófica de Nietzsche em Sartre não é identificada por conceitos ou recuperação de temas tratados, mas sim por um agir, por uma maneira de se portar no mundo, atitude que acaba por condicionar todo um pensamento filosófico. Contudo, houve uma mudança. A multiplicidade se desgarrou da vida e se tornou um mérito em si mesma e uma nova ordem foi estabelecida. A prática de um jeito, de um fazer filosófico, criticado por Nietzsche e Sartre, antes taxada de barbárie, criou raízes e tornou-se expressão dominante. Longe desta tragédia pôr fim às batalhas. Apenas os nossos autores foram obrigados a trocarem de trincheiras. Aquele agir não era mais cultuado, mas tido como marginal ao processo vigente. Aquilo que era degenerado assumiu a face do instituído e respeitado, e aqueles que desafiavam o seu poder, tornaram-se bárbaros. Perante sua contemporaneidade, tanto Nietzsche quanto Sartre incorporaram os valores bastardos com o intuito de confrontar seus iguais e de transformar suas épocas, civilizações empobrecidas pelo aviltamento da própria noção de homem e de cultura. Nada poderia ser mais concreto do que esta influência existencial, esta aproximação quase que corpórea entre Nietzsche e Sartre. Afinal, a única herança possível que um andarilho pode deixar a outro é o movimento do próprio corpo, sua inquietude frente à mesmice. O único espólio a ser reclamado por um bárbaro é o seu desejo por dilacerar o estabelecido sob bases ilusórias; é o martelo rumo àquilo cristalizado pela inércia. Entender o parentesco de Sartre com Nietzsche ganha relevo a partir deste cenário contemporâneo. O segredo do agir sartriano, o seu encanto é esta inspiração pouco consciente de Nietzsche, este ímpeto perante a vida deixado pelo filósofo alemão. De certa forma, Sartre é um nietzschiano pelo avesso, solto das amarras conceituais de sua inspiração, livre então para refletir, à sua maneira, o seu próprio tempo. Neste sentido, tentar encontrar rastros na obra sartriana de um Nietzsche mais conceitual ou, em outras palavras, tentar ver Sartre como um intérprete tradicional de Nietzsche é afastar de vez qualquer possibilidade de vislumbrar a espetacular e decisiva contribuição nietzschiana no modo de se portar sartriano. Esta semelhança sem igualdade é fruto de um espelho existencial. Sartre, ao criticar e menosprezar Nietzsche, acaba por evidenciar a si próprio. O pensador alemão traz à tona aquilo que o filósofo francês nunca soube aceitar pacificamente em sua história: sua obsessão pela palavra, seu desejo de se tornar um escritor, seu gosto pelo estilo, enfim, sua autointitulada “neurose burguesa”. Nietzsche surge como imagem refletida daquilo que Sartre sempre tentou transformar ou superar, mas jamais conseguiu se desvencilhar: a ele próprio. 

Referências bibliográficas:

 LÉVY, B-H. O século de Sartre - inquérito filosófico. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 2001.

 MARTON, S. Voltas e reviravoltas - acerca da recepção de Nietzsche na França. In: Nietzsche, um "francês" entre os franceses. São Paulo: Editora Barcarolla; Discurso Editorial. 2009.

MURICY, K. Benjamin e Nietzsche: considerações sobre o conceito de história e a crítica da cultura. In: Revista Síntese Nova Fase, v.20, n.63. Belo Horizonte. 1993.

Site de referência:

http://www.cadernosnietzsche.unifesp.br

"O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós." Sartre.



Sartre e a consciência:


Para Sartre, todo estudo sobre a realidade humana deve ter por princípio a subjetividade, precisamente a consciência – o cogito. No entanto, difere consideravelmente das características apresentadas na origem dessa temática, especificamente no que diz respeito a maneira de como foi estabelecido pelo plano cartesiano. Em Descartes, o cogito corresponde na constatação de uma substância pensante – Eu penso – cuja conseqüência resulta numa subjetividade fechada em si mesma, que pretende estabelecer o domínio do conhecimento humano. Sartre destaca que o Eu penso (cogito) de Descartes, trata-se apenas de uma ação que corresponde a um caráter funcional: “Descartes o havia questionado em seu aspecto funcional: ‘Eu duvido, eu penso’. E, por querer passar sem fio condutor desse aspecto funcional à dialética existencial, caiu no erro substancialista”. Segundo Sartre, Husserl segue o mesmo procedimento permanecendo também numa descrição funcional do cogito, resultando numa simples aparência. Assim, tanto Descartes como Husserl permaneceram numa verdade essencial. A consciência, em Sartre, no eixo da fenomenologia, tem o mesmo sentido descrito no pensamento husserliano: “Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se preferimos, que a consciência não tem ‘conteúdo’”. (Sartre). Esta definição de consciência faz dela uma abertura para o mundo, o que caracteriza, segundo Sartre sua intencionalidade, algo próprio da consciência. “Pela intencionalidade, ela transcende-se a si mesma, ela unifica-se escapando-se”. (SARTRE). Ou seja, a consciência se unifica na medida que ela própria se transcende para alcançar os objetos. Destaca-se que este objeto não é unificado pela consciência, pois na fenomenologia a consciência não assimila o objeto, ela escapa a si rumo ao objeto que também é transcendente. Assim, a consciência apenas desliza sobre o objeto sem aprendê-lo como um conteúdo no seu interior. Neste transcender não há nenhum núcleo que se consolida como suporte para a consciência, nem no seu interior (Descartes), nem por detrás dela (Husserl). Isto significa que a consciência (Para-si) se caracteriza como translúcida e vazia de qualquer habitante, situando para fora de si, numa relação com o mundo dos objetos (Em-si). Esta destituição de um Eu na consciência – temática relatada na obra A Transcendência do Ego – trata-se de uma composição contrária a elaboração pensada pela tradição filosófica e psicológica, que institui de maneira formal ou material esta presença egológica na consciência.  Sartre comenta: "Para a maioria dos filósofos, o Ego é um ‘habitante’ da consciência. Alguns afirmam a sua presença formal no seio das Erlebnisse como um princípio vazio de unificação. Outros – psicólogos na maior parte – pensam descobrir a sua presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento da nossa vida psíquica." (SARTRE). Nesta perspectiva, Sartre elabora uma subjetividade, caracterizada por uma consciência aberta, destituída de uma essência interior ou qualquer substância que a defina como alguma coisa. Assim: “O primeiro passo de uma filosofia dever ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência posicional do mundo”.(SARTRE). No pensamento sartreano a consciência aparece descrita em duas instâncias: a consciência não-posicional (pré-reflexiva) e a consciência posicional (reflexiva). O que faz com que a característica marcante da consciência seja ser posicional, devido a sua abertura ao mundo proporcionada pela intencionalidade. Este posicionamento se evidencia sempre frente ao mundo dos objetos – o mundo do Em-si. Isto pressupõe uma consciência não-posicional (pré-reflexiva) de si mesma; pois não podendo colocar-se como objeto de investigação da mesma maneira que faz diante do mundo; a consciência (reflexiva) se volta exclusivamente para os objetos existentes fora dela. Nesta perspectiva, o homem não pode pensar a si mesmo, no sentido clássico do termo – pensar é pensar o ser. Caso isto ocorra, ele depara com o vazio de seu ser. Desta maneira, o homem não pode abarcar seu ser, pelo fato da destituição do ser na consciência.
Para Sartre, em O Ser e o Nada, a constatação do ser da consciência (Para-si) não consiste numa coincidência, que corresponderia na plenitude de ser, como por exemplo, no pensamento de Descartes, cujo resultado implica na definição da consciência como algo fechado em si mesmo. Mas a consciência, no pensamento sartreano, se caracteriza como descompressão do ser, uma fissura causada pelo vazio que a habita; havendo um distanciamento de si. Assim, Sartre caracteriza a consciência como aquilo “que é o que não é e não é o que é” (SARTRE), ou seja, nada. Desta maneira, o cogito estruturado por Sartre não corresponde a uma concentração em volta de si mesmo, pois tal fato resultaria na instauração de uma substancialidade que constituiria a consciência como um centro de opacidade. Porém, para Sartre, o procedimento se realiza de maneira contrária, pois o cogito existe num contínuo transcender a si mesmo, ou seja, para a exterioridade. Este sair para fora de si que não dispensa a subjetividade, no sentido expresso do pensamento sartreano. Sartre admite que a idéia de ser-no-mundo marca uma atitude de suma importância para compreensão da realidade humana, atribuindo a consciência (cogito) um papel considerável nesse procedimento. Isto resulta no fato da consciência ganhar uma dimensão existencial, que não é encontrada em Descartes, para este a consciência está situada na estrutura do conhecimento, tendo uma dimensão essencialista – substancialista. Assim, a definição da consciência sartreana corresponde ao fato de que o foco sobre pensamento deve ceder lugar a experiência existencial. Sartre destaca:  “Toda  existência consciente e existe como consciência de existir” (SARTRE). Assim, a lei da existência da consciência em Sartre consiste na simples e pura consciência de ter consciência do objeto, uma consciência posicional do mundo. No entanto, caso fosse posicional de si necessitaria de uma outra consciência posicional, que por sua vez precisaria de uma outra... esta de uma outra..., assim sucessivamente num processo que levaria ao infinito – uma consciência de consciência de consciência... Para não cair numa repetição ao infinito, o autor ressalta, como caráter indispensável, a manutenção da instância da consciência não-posicional, enquanto vazia de conteúdo. O que a faz ser transcendente (intencional) e caracterizada de consciência (de) consciência, a marca da subjetividade sartreana. Desta maneira, toda consciência se define como consciência transcendente de um objeto. Este que, por sua vez, também se apresenta como transcendente para a consciência. Tal procedimento corresponde a prova ontológica da existência da consciência para Sartre: “A consciência é consciência de alguma coisa: significa que à transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é. Chamamos isso de prova ontológica” (SARTRE). Nesta perspectiva, não há consciência sem mundo (objeto) e não há mundo sem consciência. O que resulta que, no pensamento sartreano, a consciência aparece simultaneamente com o mundo. Isto porque a consciência transcende a si mesma para aquilo que ela não é – o objeto que está fora dela. A manifestação desse objeto, denominado de fenômeno, se apresenta de maneira única para consciência, não havendo, em ambos, a distinção entre  ser e aparecer. O que faz com que a consciência se reconheça como absoluta. Nas palavras de Sartre: "A consciência nada tem de substancial, é pura “aparência”, no sentido de que só existe na medida que aparece. Mas, precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o mundo inteiro se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto." (SARTRE). Por esse aspecto, Sartre rompe com a característica principal do substancialismo, o dualismo entre interior e exterior, essência e aparência. Isto se deve pelo fato da consciência como ser que coincide com seu aparecer, sendo um vazio, um Nada de ser, faz com que ela seja uma abertura constituidora do mundo. Este que aparece tal com ele é – um Em-si, enquanto a consciência surge como possibilidade de ser – um Para-si. Outro aspecto que marca o pensamento sartreano consiste na caracterização da consciência como negatividade, que se realiza devido ao fato dela colocar-se em questão, encontrando no seu próprio ser o nada. Para Sartre: “O homem é o ser o qual o nada vem ao mundo” (SARTRE). Dessa maneira, a consciência se constitui como pura negatividade, marcada por um processo de nadificação, que para Sartre consiste na própria interrogação de si. O que nadifica é a abertura da consciência que se posiciona frente ao mundo, pela qual ela não é, como também não é uma identidade tal como se apresenta no mundo. Assim, a consciência surge tendo como objeto um ser que ela não é, enquanto ela mesma é nada. A negatividade corresponde justamente esta destituição de um ser pleno no interior da consciência, e, para Sartre: “(...) a consciência interrogativa que  ao introduzir a negatividade no mundo, como libera o nada para que ele venha a ‘cintilar’ sobre as coisas” (SARTRE). A partir da tese da nadificação da consciência, aparece o conceito de liberdade como o ser da consciência, ou seja, a consciência nada mais é do que liberdade. Simplesmente porque o Para-si (consciência) é um nada de ser, um vazio total, pura indeterminação e totalmente livre para criar seu ser, movendo-se pelas próprias possibilidades. Caso contrário, o Para-si não se constituísse pelo nada de ser  e fosse algo que é, um ser Em-si, um objeto fechado, opaco, denso, estaria fadado desde sempre e para sempre a um sentido, a uma essência. O que acarretaria que nesse processo a essência precederia a existência. Tal procedimento, se distancia do pensamento sartreano cuja máxima maior consiste que a existência precede a essência. Assim, o homem existe enquanto no núcleo do seu ser há (o) nada, o que remete à uma liberdade: a um fazer-se ser através das escolhas criando uma essência. É através do nada na consciência que a liberdade invade o ser humano, fazendo dela (liberdade) o ser da consciência. Isto resulta que a realidade humana seja caracterizada como consciência de liberdade. No entanto, a liberdade, para Sartre, não significa uma propriedade que pertença à essência do ser humano, nem mesmo ela se caracteriza como uma essência, mas ao contrário, a liberdade que faz com que a essência apareça. Nas palavras de Sartre a liberdade se consolida como o próprio ser homem: "A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo que chamamos de liberdade não pode diferençar do ser da “realidade humana”. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre ser do homem e seu “ser livre”. (SARTRE). A emergência da liberdade é proporcionada pela dupla nadificação do ser, ou seja, o ser humano não é o mundo – um Em-si – tal qual não encontra nele uma identidade, mas sim um não ser. Sartre destaca: "A liberdade por seu próprio surgimento, determina-se em um “fazer”. Assim, a liberdade é falta de ser em relação a um ser dado, e não surgimento de um ser pleno. (SARTRE). Assim, a liberdade, para Sartre, não é entendida como um simples poder indeterminado do Em-si (objeto) ou do Para-si (nada), mas é uma síntese entre ambas que pressupõe a escolha. Neste caso, a liberdade é  autonomia de escolha. Segundo Sartre, a liberdade é radical, pois o fato de não escolher, destaca o autor, já trata-se de uma escolha: a de não escolher. Nota-se que, as escolhas providas da liberdade não são deliberadas, mas conscientes, ou seja, a consciência se identifica com a escolha que faz, o que torna o ser humano totalmente responsável por elas.


Referências Biliográficas:

BORNHEIM, Gérard. Sartre: Metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva. 1971

MOUTINHO, L. D. Sartre: existência e liberdade.  São Paulo: Moderna, 1995.

PENHA, João. O que é existencialismo. Editora Brasiliense, 2001 (Coleção Primeiros Passos 61).

SARTRE, J. P. O Ser e o Nada: Ensaio de ontologia fenomenológica, trad. Paulo Perdigão Petrópolis: Vozes, 2002

Site de referência:

http://www.urutagua.uem.br

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

"Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana." Carl Jung


Sartre e a condição humana:

O existencialismo de Sartre está inteiramente estruturado no princípio filosófico de que no homem a existência precede a essência, e esta é construída através da liberdade responsável que o homem manifesta ao escolher sua própria vida. Nada, nem mesmo Deus, pode justificar o homem ou retirá-lo de sua liberdade total e absoluta, ou ainda salvá-lo de si mesmo.  A definição mais clara sobre a concepção de homem em Sartre se dá em uma conferência por ele proferida primeiramente em Paris (1946), a qual depois foi repetida  e intitulada O Existencialismo é um humanismo. Esta conferência foi motivada pela necessidade que Sartre teve em responder as críticas de marxistas e cristãos acerca do existencialismo. Para os marxistas, o existencialismo coloca o homem na condição de desmotivado para agir, desolado, além de acusá-lo de afastar o homem da solidariedade. Em seu ensaio O Existencialismo é um Humanismo, Sartre usa como exemplo um objeto fabricado para explicar o princípio de que a existência precede a essência: "Consideremos um objeto fabricado, como por exemplo, um livro ou um corta- papel: tal objeto fabricado por um artífice que se inspirou de um corta- papel é ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos, pois, que, para cada corta-papel, a essência – quer dizer, o conjunto de receita e de características que permitem produzi-lo e defini-lo – precede a existência: e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel está bem determinada. Temos pois uma visão técnica." (SARTRE). Os que acreditam em Deus criador, conceberão Deus como construtor superior, o qual confere existência às coisas, modelando-as segundo um conceito ou ideia pré-formada na mente, como faz o fabricante de corta papéis. Já os ateus, embora não acreditem num criador, tomam outro pressuposto: diferente das coisas, animais, o homem tem a existência precedida pela essência, o que leva Sartre a afirmar que o homem é o único ser que existe antes de sua essência. Com este argumento, Sartre nega a existência de Deus e exalta a existência humana. Sartre afirma que se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, o homem. Primeiro ele existe, se descobre, surge no mundo e só depois irá se definir, ou seja, primeiramente ele é “nada”, só depois será e o será conforme se fizer, de acordo com o que tiver projetado. Com essa ideia, entende-se que o homem é condenado a ser livre. A essência do homem vem de suas escolhas. Quando ele é “jogado” no mundo não tem essência, ele é não-ser, ou seja, ausência de ser. Aos poucos ele vai tomando consciência de sua existência e do grande desejo dele ser, mas ser é acabado, realizado. Caso o homem fosse isso ele seria uma coisa, ou seja ser Em-si. E diferente das coisas que são em si, ou seja, já estão prontas, dadas e acabadas como acontece com a pedra, a mesa e tantos outros. No homem acontece diferente, porque no momento em que ele é “jogado” no mundo ele começa a se construir, ou seja, o homem é uma eterna indeterminação. O homem é antes de qualquer coisa um projeto* que se vive subjetivamente, nada existe anterior a este projeto. Ele será o que ele tiver projetado e não o que ele quiser ser. Para isso, é necessário destacar que há dois tipos de subjetivismo: a escolha do sujeito individual por si só; e o outro a impossibilidade para o homem superar a subjetividade humana (SARTRE). Ao afirmar que o homem escolhe a si próprio, entende-se também que o homem escolhe todos os homens. Pois, segundo Sartre, não há nenhum dos atos que ao se criar o homem que ele deseja ser, não se crie também uma imagem do homem conforme ele julga que deva ser.  Portanto, o homem nunca pode escolher o mal, pois mesmo o mal sendo escolhido, seria um bem. A situação do homem existencialista, que não tem um Deus para se apoiar, mas ao contrário, tem a responsabilidade de sozinho se realizar e se construir, é a de alguém que se depara com a angústia, o desespero e o desamparo. O homem é angústia, mas não no sentido sombrio e triste da vida humana. Isso significa que, reconhecendo-se livre, ele percebe que não é apenas o que escolheu ser, mas também um legislador, que ao escolher escolhe também toda a humanidade. O indivíduo se angustia porque se vê numa situação em que tem de escolher sua vida, seu destino, sem buscar apoio ou orientação de ninguém: "O existencialismo não tem pejo em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade." (SARTRE). O homem não pode deixar de ter na decisão que tomar, uma certa angústia. Segundo Sartre, todos os chefes a conhecem, o que não os impede de agir, mas ao contrário é condição de sua ação. Ao escolher uma possibilidade dentro da pluralidade possível, o homem se dá conta de que ela só tem valor por ter sido escolhida. Outra condição em que o homem se encontra é a de desamparo, a qual se dá pelo fato de ele ter que escolher a vida e seu destino, sem nenhum apoio ou orientação de outrem. O homem existencialista se encontra desamparado, pelo fato de não haver mais desculpas para ele. Porque, se é livre, projeto de si mesmo, autor de seu destino, ele é inteiramente responsável por si mesmo, não tem mais em quem colocar suas desculpas, mas se encontra em condição de liberdade, ele está condenado a ser livre. Uma vez lançado no mundo, ele será responsável por tudo que fizer, o que o faz se sentir desamparado. Sartre retoma Dostoievski, o qual dissera: “se deus não existisse, tudo seria permitido”, e é aí que se encontra o ponto de partida para o existencialismo. Com efeito, tudo é permitido, se Deus não existe, o homem fica abandonado, pois não encontra em si nem fora de si um apoio, não tem a quem se apegar, e se vê obrigado a contar apenas com seus próprios recursos. Nesta condição, o homem não pode contar com nenhuma humanidade, nenhum partido, nenhum companheiro que possa ajudá-lo, mas única e exclusivamente consigo próprio, isto é, com suas próprias forças. A última condição na qual o homem se encontra é a de desespero pelo fato dele se sentir desamparado.  Desespero para Sartre é “agir” sem esperança: "Quanto ao desespero, esta expressão tem um papel extremamente simples. Quer ela dizer que nós nos limitamos a contar com o que depende da nossa vontade, ou o conjunto das probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se deseja uma coisa, há sempre uma série de elementos prováveis (…) a partir do momento que as possibilidades que considero não são rigorosamente determinadas pela minha ação, devo desinteressar-me porque nenhum Deus, nenhum desígnio pode adaptar o mundo e seus possíveis a minha vontade. No fundo quando Descartes dizia:  ‘vencemos-nos antes a nós do que ao mundo’, queria significa a mesma coisa agir sem esperança." (SARTRE). O existencialismo mostra o homem como realmente ele é, com suas grandezas e pequenez. “A doutrina que vos apresento”, diz Sartre, “é justamente a oposta ao quietismo visto que ela declara: só há realidade na ação, o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza, nada é  portanto, nada mais que o conjunto de seus atos, nada mais do que a sua vida” (SARTRE). Sartre procurou refletir, em sua filosofia,  o homem que sobreviveu à Segunda Grande Guerra e que tem diante de si a necessidade de pensar a partir de si mesmo. Afirmar que a existência precede a essência, não é simplesmente suprimir Deus. Dizer que a existência precede a essência é colocar o homem como um “nada” lançado no mundo, desprovido de uma definição. O homem surge no mundo e, de início, não é nada; só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo.  Somente assim o homem irá se definir como ser existente e consciente de si mesmo. Lançado no mundo sem perspectivas pré-determinadas, o homem determina sua vida ao longo do tempo e descobre-se como liberdade, ou seja, como escolha de seu próprio ser no mundo.

Referências Bibliográficas:

MOREIRA, Joselito Adriano. O homem existencialista em Sartre. In: Ensaios: nosso modo de pensar. Mariana: Dom Viçoso, 2003.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [1946]. (Os Pensadores)

Site de refrência:

www.existencialismo.org.br