"Uma de minhas insistentes súplicas a Deus e ao meu anjo da guarda era não sonhar com espelhos. Sei que os vigiava com inquietação. Algumas vezes, receei que começassem a divergir da realidade; outras, ver meu rosto neles desfigurado por adversidades estranhas. Soube que esse temor está, outra vez, prodigiosamente no mundo".Jorge Luis Borges
Espelhos e ilusões:
Um dos primeiros espelhos que encontramos no romance é o espelho interior da memória de Adalberto. Relembrando para tentar compreender, ou quem sabe, esquecer os motivos de sua condenação a vinte anos de prisão por assassinato (que ele argumentava como acidental) da sua esposa. E ele próprio, se olhando no espelho do tempo, diz, no final do romance: ―"Possivelmente a vida rejeitou-me como o mar a um cadáver". A narrativa de estrela Polar é não-linear, típica dos romances vergilianos, e é significativa pois utiliza a memória do narrador como espelho para que ele enxergue a si mesmo e discorra sobre todo o passado. Recordando todos os lances da sua vida em Penalva, Adalberto perceberá que tudo o que aconteceu tinha uma correspondência. Quando evoca sua solidão no cárcere, percebe que a solidão da vida no Lá-Fora já era um ensaio (e por que não um reflexo?) para a sua cela, ao lembrar-se do seu quarto, onde refugiou-se após a morte da mãe relembrando-se: "Sou filho único, o meu quarto é o quarto escuro‘. Chamam-lhe assim na casa — mas havia uma janela. Só que dava para um muro. Tal como agora a prisão, revejo-o ligado ao meu destino". Uma vez fixado na cidade, Adalberto é forçado a espelhar-se na profissão do pai (com quem não consegue identificar-se, porque a mirte do pai aconteceu quando ele pequeno), que na verdade reflete os anseios de um tio, livreiro, que o designa para cuidar de uma filial de sua livraria na cidade. E é nessa Penalva, ainda com ar de aldeia, de ruas vazias e de aspecto soturno, (a própria cidade ficcional é o espaço ideal para as necessidades da narrativa) como se convidasse a memória e os pensamentos a conviver com fantasmas e assombrações que Adalberto encontra, como sua própria empregada, Aida, por quem sua fibra logo estremece, pela sua beleza, por sua força, pelo seu mistério. A relação de Adalberto e Aida inicia-se por entre silêncios e evasivas, como alguém que fala diante a um espelho, uma comunicação que se segue milagrosamente pela entrega de um e pela indulgência do outro. Aida chega a ser um nome suspirado como um gemido de dor por Adalberto, tal o seu mutismo e o seu mistério. Ele descobre em poucas palavras que ela abandonara um curso superior, que tem uma irmã que é enfermeira, uma mãe que necessitava dos ares de Penalva para se recuperar de uma doença e um pai que fizera uma cirurgia de garganta. Mas a solidão, ainda que acompanhada, necessita de respostas, necessita de espelhos para se iludir de uma presença absoluta. Para Adalberto, o encontro com Aida é um encontro absoluto, um amor de desde sempre, porém não era suficiente para estancar suas perguntas: "Rapidamente ultrapassei os limites da plenitude de um encontro que se basta, de duas mãos que se prendem, de dois olhares que se fitam. Rapidamente me interroguei sobre quem estava atrás desse olhar e dessas mãos e quis chegar lá... É tão difícil explicar. É tão difícil e tão alto e tão fora da nossa medida, que estremeço de loucura e as minhas palavras se atropelam. Mas isto existe, como é possível que seja um erro? Há um além para lá de ti, da pessoa que vejo e está aqui, e que é a pessoa que és. Trago em mim o apelo absoluto da identidade absoluta, a exigência da comunhão verdadeira. Porque eu sou de mais para mim —e tu. Jamais te saberei? Jamais tocarei com as minhas mãos a chama que arde em ti? Estamos cheios de prodígio, não é estúpido que o ignoremos? Para lá de todas as portas há uma porta ainda, e essa é que é a porta da nossa morada..." (Estrela Polar). Uma dessas portas abre-se num passeio em uma tarde, em um bosque, onde Adalberto topa, por acaso com a irmã gêmea de Aida, Alda, que sofre um acidente de bicicleta, e ele pensando ser a namorada, chama-a continuamente pelo nome, ao que a garota rebate, afirmando ser a irmã gêmea, atordoando a mente de Adalberto: [...] ―Mas eram inteiramente iguais. E, todavia, em quê diferentes? Porque aquilo que me unira a ela enquanto ela era Aida, que mistério absurdo o transformou em mim, o destruiu? Quando Aida foi Alda, que é que mudou nela para que já a não reconhecesse? Quantas vezes o perguntei pela vida fora, o pergunto agora ainda, se acaso foi Alda que eu..."(Estrela Polar). Depois desse encontro surge até a dúvida se eram mesmo irmãs gêmeas, ou se eram apenas muito parecidas, ainda que parentes (primas) e começa a emergir ao redor de Adalberto a incerteza. Percebe que as irmãs se revezam, trocando de lugar no trabalho; percebe que o amigo Emílio, médico, tem um relacionamento com Alda, e talvez com Aida, e ele próprio é o único incapaz de distinguir as duas (o seu empregado, Faustino, o sabe; Emílio sabe qual das duas, embora idênticas, é a mais bonita); sendo partícipe de um quadrado amoroso no qual ele é o mais desinformado de tudo. Só sabe que Aida é uma presença. Que Alda é uma presença. Passa a nomeá-las como uma só: Aida-Alda. E em seu peito explode uma dúvida cruel, como se percebesse no espelho a sua imagem e um sorriso que não era o seu: Mas quem ―eu? É uma evidência sem gênero, sem sexo — acaso já o pensaste? Que estranho! Como um ―tu! Porque, Imaginando-a amante de Emílio fica sempre à sua espreita e salva-a do atropelamento — algo absurdo para uma cidade vazia como Penalva — e logo depois, com ela recuperando-se, tenta matá-la por estrangulamento, mas ela morre do coração. O que não atenua a pena de Adalberto, que passa vinte anos na cadeia. O romance acaba assim demonstrando a complexidade dos conflitos de um Eu que se imagina sempre completo numa relação direta com o Outro, o Tu. Nosso sadismo particular, na ânsia de tentar erradicar com a nossa solidão se vê incapaz de prender em qualquer espelho que seja o Outro, por mais submisso que ele seja por algum momento não deixará de ser uma entidade livre. Como figuras encerradas no espaço especular nos é impossível quebrar os limites da moldura e tentar apreender tudo a nosso bel-prazer. Por isso a obsessão de Adalberto, que fracassa votando à imagem inapreensível de alguém que reflete alguém que ele amou (ou pensou amar) um ódio terrível que acaba na morte de Alda. E resta-lhe o espelho, ou a tela da memória que ele tenta colar para reviver, mesmo sabendo que ainda como um círculo vicioso, os cacos de sua vida, sua memória:"[...] partirei então para Penalva. É uma cidade fechada, no alto de um monte. A dez passos há o vazio. Então, provavelmente, encontrarei Aida. Ela tem uma irmã parecida com ela, até no nome. E eu amarei Aida e direi: ―tu, ó única. Tudo quanto em mim é de mais o sonharei então nela e o sentirei então nela e tudo em mim será ainda um excesso e perguntarei ainda: quem? onde? para quê? Depois confundirei Aida com Alda, que é Ainda: ―ó única. Então Aida dir-me-á: ―não sou quem julgas, mas que admira?Tu nunca amaste ninguém. Haverá um filho entre os dois e já morto. E eu matá-la-ei ou dirão que a matei, porque a morte é o signo do meu excesso — e serei condenado a vinte anos. Abrir-me-ão as portas depois, se viver ainda. E voltarei para Penalva. Então encontrarei decerto Aida que tem uma irmã extraordinariamente parecida com ela. repara: um ―tu comparticipa ainda de um ―eu, está ainda perto dele. Um homem diz ―eu, diz ―eu uma mulher — e a ambos dizemos ―tu. Porque ao dizermo-lo abordamos a iluminação onde não há sexo, nem gênero, nem idade, nem ―psicologia: o sexo vem depois, quase se chega à rua. ―Eu sou alto, ou ―eu sou bela — sim. Mas ―eu sou ―eu apenas, ―tu és ―tu apenas. Só o ―ele tem gênero, porque o ―ele está longe, é já do mundo das coisas... Quem ―eu?" (Estrela Polar). Aida então, como num passe de mágica cede lugar à Alda, com quem Adalberto alterna momentos de sadismo possessivo e um masoquismo, representantes da sua paixão do seu empreendimento de tentar amar alguém, de uma sedução capenga de alguém que sempre quer ver refletido no outro (como se Adalberto,implicitamente, no seu nome trouxesse fragmentos de Aida e Alda, tanto que ele detesta ser chamado apenas de Berto), mas nada é do que paixão cega e seca, obstinada. Adalberto desespera-se quando do passeio à praia e as irmãs, náufragas, são enfim separadas. Ele casa com Alda, mas permanece ligado ao fantasma da outra, num exercício de tortura para Alda extremamente insuportável, posto que ela, a essa altura quer ser apenas ela mesma e não reflexo de alguém. E como em milhares de fragmentos de espelhos quebrados, Adalberto percebe enfim o que acontecia ao seu redor de forma mais efetiva e resta-lhe apenas para tentar restaurar seu espelho o filho, que naturalmente, chama-se Adalberto. A partir daí é como tudo se passasse num espelho embaçado. Sabemos que Alda morre no naufrágio, assumindo Aida a posição da irmã, aumentando ainda mais os exercícios de loucura e obsessão do marido, que já imagina que ambas eram apenas uma só pessoa.