"Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação." Vergílio Ferreira.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
dentro de nós há algo que não conseguimos nomear, isso é o que somos. José Saramago.
"Tento, há tantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível... sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que sentir o original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio meu irmão das palavras que já sabes um vocabulário para esse alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já estava escrito... Eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face... E outra vez me deslumbra, em alarme, a presença iluminada de mi a mim próprio, o eco longínquo das vozes que me trespassam. Como é difícil, miraculoso, pensá-lo. Quanta coisa aprendi e sei e está aí a minha disposição quando dela preciso. Mas esta simples verdade de que estou vivo, me habito em evidência, me sinto com absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, esta totalização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos, pensar o meu pensamento, porque ela é esses meus olhos e esses meus pensamentos, esta verdade que me queima quando vejo o absurdo da morte, se pretendo segurá-la em minhas mãos, revê-las nas horas de esquecimento, foge-me como fumo, deixa-me embrutecido, raivoso de suspense e ridículo... E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo - da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho que morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam na vida: a minha morte é o nada de tudo. como é possível? Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas, que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímel. E este mundo complexo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia - eu sei até à vertigem - será o nada absoluto, dos astros mortos, do silêncio. Mas tudo isto é quase falso, é quase estúpido só de estar a pensá-lo, a dizê-lo, porque a sua evidência é um milagre instantâneo.
Início do livro "Aparição" de Vergílio Ferreira, páginas 7, 8 e 9.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
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